quarta-feira, 16 de maio de 2012

O PRANTO DE MARIA PARDA

HUMANISMO
Humanismo é o nome que se dá à produção escrita histórica literária do final da Idade Média e início da Moderna, ou seja, parte do século XV e início do XVI, mais precisamente, de 1434 a 1527 . Três atividades mais destacadas compôs esse período: a produção historiográfica de Fernão Lopes, a produção poética dos nobres, por isso dita Poesia Palaciana, e a atividade teatral de Gil Vicente.
É interessante ressaltarmos que o termo Humanismo é polissêmico, podendo ser considerado sob vários enfoques, ao mesmo tempo distintos e interdependentes. Para os limites desta aula, interessa nos o seu sentido mais estrito ou histórico, entendido enquanto o movimento literário e cultural de uma época marcada por profundas transformações na sociedade européia.
O Humanismo, segunda Escola Literária Medieval, também conhecido como Pré-Renascimento ou Quatrocentismo, corresponde ao período de transição da Idade Média para a Idade Clássica. Tem como marcos iniciais as nomeações de Fernão Lopes como Guarda-Mor da Torre do Tombo (local onde se guardavam os documentos oficiais), em 1418 e, como Cronista-Mor do Reino, em 1434, quando recebeu de D. Duarte, rei de Portugal, a incumbência de escrever a história dos reis que o precederam.
Historicamente o Humanismo foi um movimento intelectual italiano do final do século XIII que irradiou-se para quase toda a Europa, isto porque, após a queda de Constantinopla em 1453, muitos intelectuais gregos (professores, religiosos e artistas) refugiaram-se na Itália e começaram a difundir uma nova visão de mundo, mais antropocêntrica, indo de encontro à visão teocêntrica medieval. Entre as principais idéias humanistas estavam:
• retomada da cultura antiga, através do estudo e imitação dos poetas e filósofos greco-latinos;
• revalorização da filosofia de Platão, especialmente no que diz respeito à distinção entre o amor espiritual e o carnal - neoplatonismo;

GIL VICENTE
Gil Vicente (1465? — 1536?) é geralmente considerado o primeiro grande dramaturgo português, além de poeta de renome. Há quem o identifique com o ourives, autor da Custódia de Belém, mestre da balança, e com o mestre de Retórica do rei Dom Manuel. Enquanto homem de teatro, parece ter também desempenhado as tarefas de músico, actor e encenador. É freqüentemente considerado, de uma forma geral, o pai do teatro português, ou mesmo do teatro ibérico já que também escreveu em castelhano - partilhando a paternidade da dramaturgia espanhola com Juan del Encina.
A obra vicentina é tida como reflexo da mudança dos tempos e da passagem da Idade Média para o Renascimento, fazendo-se o balanço de uma época onde as hierarquias e a ordem social eram regidas por regras inflexíveis, para uma nova sociedade onde se começa a subverter a ordem instituída, ao questioná-la. Foi, o principal representante da literatura renascentista portuguesa, anterior a Camões, incorporando elementos populares na sua escrita que influenciou, por sua vez, a cultura popular portuguesa.

Pranto de Maria Parda
Por que vio as ruas de Lisboa com tão poucos ramos nas tavernas e o vinho tão caro, e ella não podia viver sem elle
O Pranto de Maria Parda não encerra mysterios de iniqüidade, mas também não deve ser lido pela innocencia.

PRANTO DE MARIA PARDA

O Pranto de Maria Parda é uma das mais célebres peças de Gil Vicente. Intencionalmente, o grande dramaturgo, retratou a realidade das classes pobres de Lisboa, no Século XVI. Contrariando os discursos que enalteciam e louvavam a beleza e opulência da capital de um imenso império, Gil Vicente procura desvelar a vivência dos negros e mestiços chegados e nascidos na metrópole que, em Quinhentos, calcula-se que perfaziam 10% da população de Lisboa. Muitos eram alcoólatras, mal-cristianizados, deprimidos pela sub-vida serviçal e sem perspectivas de futuro a que estavam votados. Vêm-se carnalizados na figura literária de Maria, perspicaz e corrosiva observadora da sociedade, amante do vinho carrascão. Podemos imaginar apenas o impacto que o monólogo terá tido na corte e junto do monarca; quando se viu defronte de atrevida mestiça, da base da pirâmide social, para mais mulher, mais a mais sexualmente livre, assumir, entre canadas (litros) de vinho, uma das mais lúcidas e desesperançadas críticas à sociedade dos "fumos da Índia”.
Gil Vicente foi genial e arrojado, mas quinhentos anos depois já o império se foi, já nada diz. Na linha de exigência a que acostumou o seu público. Para lá da coisificação compulsiva, uma criatura parda; simultaneamente pária, perdida e deambulando com desespero na solidão, procurando uma voz que não responde: - "Não sei que faça..." – diz. "Quem quer fogo, busque lenha!" – troça de si. Opressão auto-infligida é um retrato e metáfora da fragilidade humana.
Maria Parda, poderosa sedutora cheia de espírito, sorumbática neurastênica, não é fácil de ser interpretada.


Por que vio as ruas de Lisboa com tão poucos ramos nas tavernas e o vinho tão caro, e ela não podia viver sem elle
Eu só quero prantear
Este mal que a muitos toca;
Que estou já como minhoca
Que puzerão a seccar.
Triste desaventurada,
Que tão alta está a canada
Pera mi como as estrellas;
Oh! coitadas das guelas!
Oh! guelas da coitada!

Triste desdentada escura,
Quem me trouxe a taes mazelas!
Oh! gengivas e arnellas,
Deitae babas de seccura;
Carpi-vos, beiços coitados,
Que já lá vão meus toucados,
E a cinta e a fraldilha;
Hontem bebi a mantilha,
Que me custou dous cruzados.

Oh! Rua de San Gião,
Assi 'stás da sorte mesma
Como altares de quaresma
E as malvas no verão.
Quem levou teus trinta ramos
E o meu mana bebamos,
Isto a cada bocadinho?
Ó vinho mano, meu vinho,
Que ma ora te gastamos.

Ó travessa zanguizarra
De Mata-porcos escura,
Como estás de ma ventura,
Sem ramos de barra a barra.
Porque tens ha tantos dias
As tuas pipas vazias,
Os toneis postos em pé?
Ou te tornaste Guiné
Ou o barco das enguias.

Triste quem não cega em ver
Nas carnicerias velhas
Muitas sardinhas nas grelhas;
Mas o demo ha de beber.
E agora que estão erguidas
As coitadas doloridas
Das pipas limpas da borra,
Achegou-lhe a paz com porra
De crecerem as medidas.

Ó Rua da Ferraria,
Onde as portas erão mayas,
Como estás cheia de guaias,
Com tanta louça vazia!
Ja m'a mim aconteceo
Na manhan que Deos naceo,
Á hora do nacimento,
Beber alli hum de cento,
Que nunca mais pareceo.

Rua de Cata-que-farás,
Que farei e que farás!
Quando vos vi taes, chorei,
E tornei-me por detras.
Que foi do vosso bom vinho,
E tanto ramo de pinho,
Laranja, papel e cana,
Onde bebemos Joanna
E eu cento e hum cinquinho.

Ó tavernas da Ribeira,
Não vos verá a vós ninguém
Mosquitos, o verão que vem,
Porque sereis areeira.
Triste, que será de mi!
Que ma ora vos eu vi!
Que ma ora me vós vistes!
Que ma ora me paristes,
Mãe da filha do ruim!

Quem vio nunca toda Alfama
Com quatro ramos cagados,
Os tornos todos quebrados!
Ó bicos da minha mama!
Bem alli ó Sancto Espírito
Ia eu sempre dar no fito
N'hum vinho claro rosete.
Oh! meu bem doce palhete,
Quem pudera dar hum grito!

Ó triste Rua dos Fornos,
Que foi da vossa verdura!
Agora rua d'amargura
Vos fez a paixão dos tornos.
Quando eu, rua, per vós vou,
Todolos traques que dou
São suspiros de saudade;
Pera vós ventosidade
Naci toda como estou.

Fui-me ó Poço do chão,
Fui-me á praça dos canos;
Carpi-vos, manas e manos,
Que a dezaseis o dão.
Ó velhas amarguradas,
Que antre três sete canadas
Sohiamos de beber,
Agora, tristes! remoer
Sete raivas apertadas.

Ó rua da Mouraria,
Quem vos fez matar a sêde
Pela lei de Mafamede
Com a triste d'agua fria?
Ó bebedores irmãos,
Que nos presta ser christãos,
Pois nos Deos tirou o vinho?
Ó anno triste cainho,
Porque nos fazes pagãos?

Os braços trago cansados
De carpir estas queixadas,
As orelhas engelhadas
De me ouvir tantos brados.
Quero-m'ir ás taverneiras,
Taverneiros, medideiras,
Que me dem hua canada,
Sôbre meu rosto fiada,
A pagar la polas eiras.

(Pede fiado á Biscaïnha.)

Ó Senhora Biscaïnha,
Fiae-me canada e meia,
Ou me dae hua candeia,
Que se vai esta alma minha.
Acudi-me dolorida,
Que trago a madre cahida,
E çarra-se-me o gorgomilo:
Enquanto posso engoli-lo,
Soccorei-me minha vida.

Biscainha

Não dou eu vinho fiado,
Ide vós embora, amiga.
Quereis ora que vos diga?
Não tendes isso aviado.
Dizem lá que não he tempo
De pousar o cu ao vento.
Sangrade-vos, Maria Parda;
Agora tem vez a Guarda
E a raia no avento.

(A João Cavalleiro, Castelhano).

Devoto João Cavalleiro,
Que pareceis Isaïas,
Dae-me de beber tres dias,
E far-vos-hei meu herdeiro.
Não tenho filhas nem filhos,
Senão canadas e quartilhos;
Tenho enxoval de guarda,
Se herdardes Maria Parda,
Sereis fóra d'empecilhos.

João Cavalleiro

Amiga, dicen por villa
Un ejemplo de Pelayo,
Que una cosa piensa el bayo
Y otra quien lo ensilla.
Pagad, si quereis beber;
Porque debeis de saber
Que quien su yegua mal pea,
Aunque nunca mas la vea,
Èl se la quiso perder,

(Vai-se a Branca Leda).

Branca mana, que fazedes?
Meu amor, Deos vos ajude;
Que estou no ataude,
Se me vós não accorredes.
Fiade-me ora tres meias,
Que ando por casas alheias
Com esta sêde tão viva,
Que ja não acho cativa
Gota de sangue nas veias.

Branca Leda

Olhade, mulher de bem,
Dizem qu'em tempo de figos
Não ha hi nenhuns amigos,
Nem os busque então ninguem.
E diz o exemplo dioso,
Que bem passa de guloso
O que come o que não tem.
Muita agua ha em Boratem
E no poço do tinhoso.

(Vai-se a João do Lumiar)

Senhor João do Lumiar,
Lume da minha cegueira,
Esta era a verde pereira
Em que vos eu via estar.
Fiae-me um gentar de vinho,
E pagar-vos-hei em linho,
Que ja minha lã não presta:
Tenho mandada hua besta
Por elle a antre Douro e Minho.

João do Lumiar

Exemplo de mulher honrada,
Que nos ninhos d'ora a hum anno
Não ha passaros oganno.
I-vos, que sois aviada.
Emquanto isto assi dura,
Matae com agua a seccura,
Ou ide a outrem enganar,
Que eu não m'hei de fiar
De mula com matadura.
(Indo pera casa de Martin Alho, vai dizendo):

Amara aqui hei d'estalar
Nesta manta emburilhada:
Oh! Maria Parda coitada,
Que não tens já que mijar!
Eu não sei que mal foi este,
Peor cem vezes que a peste,
Que quando era o trão e o tramo,
Andava eu de ramo em ramo
Não quero deste, mas deste.

(Diz a Martim Alho):

Martim Alho, amigo meu
Martim Alho meu amigo,
Tão secco trago o embigo
Como nariz de Judeu.
De sêde não sei que faça:
Ou fiado ou de graça,
Mano, soccorrede-me ora,
Que trago ja os olhos fóra
Como rala da negaça.

Martim Alho

Diz hum verso acostumado:
Quem quer fogo busque a lenha;
E mais seu dono d'acenha
Appella de dar fiado.
Vós quereis, dona, folgar,
E mandais-me a mim fiar?
Pois diz outro exemplo antigo,
Quem quizer comer comigo
Traga em que se assentar.

(Vai-se á Falula).

Amor meu, mana Falula,
Minha gloria e meu deleite,
Emprestae-me do azeite,
Que se me sécca a matula.
Até que haja dinheiro,
Fiae, que pouco requeiro,
Duas canadas bem puras,
Por não ficar ás escuras,
Que se m'arde o candieiro.

Falula

Diz Nabucodonosor
No sideraque e miseraque,
Aquelle que dá gran traque
Atravesse-o no salvanor.
E diz mais, quem muito pede,
Mana minha, muito fede.
Sete mil custou a pipa;
Se quereis fartar a tripa,
Pagae, que a vinte se mede.

Maria Parda

Raivou tanto sideraque
E tanta zarzagania,
Vou-me a morrer de sequia
Em cima d'hum almadraque.
E ante de meu finamento,
Ordeno meu testamento
Desta maneira seguinte,
Na triste era de vinte
E dous desde o nacimento.

TESTAMENTO

A minha alma encommendo
A Noé e a outrem não,
E meu corpo enterrarão
Onde estão sempre bebendo.
Leixo por minha herdeira
E tambem testamenteira,
Lianor Mendes d'Arruda,
Que vendeo como sesuda,
Por beber, at'á peneira.

Item mais mando levar
Por tochas cepas de vinha,
E hua borracha minha
Com que me hajão d'encensar,
Porque teve malvasia.
Encensem-me assi vazia,
Pois tambem eu assi vou;
E a sêde que me matou,
Venha pola cleresia.

Levar-me-hão em hum andor
De dia, ás horas certas
Que estão as portas abertas
Das tavernas per hu for.
E irei, pois mais não pude,
N'hum quarto por ataude,
Que não tivesse agua pé:
O sovenite a Noé
Cantem sempre a meude.

Diante irão mui sem pejo
Trinta e seis odres vazios,
Que despejei nestes frios,
Sem nunca matar desejo.
Não digão missas rezadas,
Todas sejão bem cantadas
Em Framengo e Allemão,
Porque estes me levarão
Ás vinhas mais carregadas.

Item dirão per dó meu
Quatro ou cinco ou dez trintairos,
Cantados per taes vigairos,
Que não bebão menos qu'eu.
Sejão destes tres d'Almada,
E cinco daqui da Sé,
Que são filhos de Noé,
A que som encommendada.

Venha todo o sacerdote
A este meu enterramento,
Que tiver tão bom alento
Como eu tive ca de cote.
Os de Abrantes e Punhete,
D'Arruda e d'Alcouchete,
D'Alhos-Vedros e Barreiro,
Me venhão ca sem dinheiro
Até cento e vinte e sete.

Item mando vestir logo
O frade allemão vermelho
Daquelle meu manto velho
Que tem buracos de fogo.
Item mais, mais mando dar
A quem se bem embebedar
No dia em que eu morrer,
Quanto movel hi houver
E quanta raiz se achar.

Item mando agasalhar
Das orphans estas nó mais
As que por beber dos paes
Ficão proves por casar.
Ás quaes darão por maridos
Barqueiros bem recozidos
Em vinhos de mui bôs cheiros;
Ou busquem taes escudeiros,
Que bebão coma perdidos.

Item mais me cumprirão
As seguintes romarias,
Com muitas ave-marias.
E não curem de Monção.
Vão por mim á Sancta Orada
D'Atouguia e d'Abrigada,
E a Curageira sancta,
Que me derão na garganta
Saude a peste passada

.Item mais me prometti
Nua á pedra da estrema,
Quando eu tive a postema
No beiço de baixo aqui.
E porque gran gloria senta,
Lancem-me muita agua benta
Nas vinhas de Caparica,
Onde meu desejo fica
E se vai a ferramenta.

Item me levarão mais
Hum gran cirio pascoal
Ao glorioso Seixal
Senhor dos outros Seixaes;
Sete missas me dirão
E os caliz encherão,
Não me digão missa sêcca;
Porque a dor da enchaqueca
Me fez esta devação.

Item mais mando fazer
Hum espaçoso esprital,
Que quem vier de Madrigal
Tenha onde se acolher.
E do termo d'Alcobaça
Quem vier dem-lhe em que jaça:
E dos termos de Leirea
Dem-lhe pão, vinho e candea,
E cama, tudo de graça.

Os d'Obidos e Santarém,
Se aqui pedirem pousada,
Dem-lhes de tanta pancada
Como de maos vinhos tem.
Homem d'Entre Douro e Minho
Não lhe darão pão nem vinho;
E quem de riba d'Avia for
Fazê-lhe por meu amor
Como se fosse vizinho.

Assi que por me salvar
Fiz este meu testamento,
Com mais siso e entendimento
Que nunca me sei estar.
Chorae todos meu perigo,
Não levo o vinho que digo,
Qu'eu chamava das estrellas,
Agora m'irei par'ellas
Com grande sêde comigo.


Estará em discussão neste estudo aquilo a que se poderá chamar a teatralidade intrínseca da obra de Gil Vicente que anda com o nome de Pranto de Maria Parda (PMP). Maria Parda lamenta-se pela falta de vinho nas tabernas de Lisboa, evocando os tempos em que ele era abundante e barato. Depois, resolve pedir o vinho fiado a alguns taberneiros que lho negam. Por fim, decide morrer e pronuncia um extenso testamento que se refere obsessivamente ao vinho.

Na Copilaçam
Figurando no Quinto Livro e último da Copilaçam de toda as obras de Gil Vicente (1562) que inclui, segundo informa o próprio compilador (decerto Luís Vicente), as trovas, e cousas miúdas, o PMP encontra-se ao lado de textos mais curtos e de espécie aparentemente diferente da dos autos. Estes haviam sido distribuídos pelos quatro primeiros Livros e, em quase todos, as notas em epígrafe, ao apresentarem o texto, assinalavam também a sua representação, com o local, a data e a ocasião. A maioria de tais rubricas relaciona as ações teatrais com festas e efemérides ligadas à vida da família real e do paço. Assim acontece com uma Visitação, que abre o Livro Primeiro e que, com as suas doze estrofes de monólogo, é coisa bem mais miúda que a maioria das composições do Quinto Livro. No entanto, nunca lhe poderíamos chamar as trovas do Vaqueiro porque foi texto representado na câmara da rainha (1502), segundo os preceitos e instruções relativa à representação teatral.
A rubrica do Pranto, que serve de título na Copilaçam, escreve assim:
De Gil Vicente em nome de Maria parda fazendo pranto porque viu as ruas de Lisboa com tão poucos ramos nas tavernas e o vinho tão caro e ela não podia viver sem ele
 A colocação do PMP no último livro não é argumento para determinar o seu carácter de trovas escritas para leitura. O Quinto Livro é uma secção sortida de restos, perdidos e achados felizes de obras que andavam publicadas em folhetos e copiadas em cancioneiros de mão.
Na época manuelina eram tênues as fronteiras que separavam a invenção e execução da poesia das do teatro. E muito haveria a dizer sobre a teatralidade inerente à produção poética que figura no Cancioneiro Geral.
A própria Copilaçam de Gil Vicente, embora não no título mas sim nos antetextos, é chamada cancioneiro, ou seja, coletânea poética, obra para ser lida. E é possível que o fosse já então. O que não exclui a representabilidade dos textos aí coligidos.

Sátira e Datação
Se na disposição do PMP em livro não se acham provas conclusivas respeitantes ao estatuto da obra, procuremo-las no conhecimento das circunstâncias que envolveram a sua produção.
Vem a obra intratextualmente datada de 1522:
na triste era de vinte
e dous desd’o nascimento
Na cronologia vicentina terá sido composição de uma época em que o autor já não fazia os autos de El-rei D. Manuel (falecido em Dezembro de 1521) e ainda não fazia os de D. João III. Luciana Stegagno Picchio fala dum Gil Vicente desempregado do paço, devido ao luto, e atuando nas ruas de Lisboa, mais perto do povo. Em 1521 já Gil Vicente teria composto uma comédia para o então príncipe D. João, a de Rubena, e nesse mesmo ano de 22 estaria talvez a compor o D. Duardos para enviar e oferecer ao mesmo D. João. Pouco antes no final de 1521, as trovas relativas à aclamação do novo rei e, sobretudo, as cópias atribuídas fantasiosamente, pela invenção do autor, a certos membros da nobreza, do clero e do município de Lisboa, eram com certeza destinada ao soberano, pois vão carregadas de conselhos para a governação, do tipo dos que figuram nas artes de reinar. Nessas cópias, a tônica é posta na necessidade de o jovem monarca proteger o seu povo, o gado arrepiado, as ovelhas suspirando / sem abrigo, os lavradores, os povos menores, ou seja, esta manada a que o rei deverá dar pasto
porque o povo coitado
não coma pão de dolor
E a última fala trovada é atribuída à própria personagem Povo.
Frei Luís de Sousa viria a descrever com veemência, nos seus Anais a esterilidade e a seca de 1521, assim como a fome que Lisboa viveu nos finais desse ano e ao longo do seguinte. Em começos de 1522 morria-se de fome nas ruas da capital, tal como Maria Parda vai morrer de sede. O cronista refere-se igualmente ao sofrimento do jovem rei com a desgraça, e à medida que tomou para atenuar a calamidade social em Lisboa.  
No PMP, os seis taberneiros que recusam fiar o vinho poderão representar um mercado lisboeta sovina, nos antípodas da caridade e do espírito das Misericórdias em que se empenhou a rainha D. Leonor e, com ela, o próprio Gil Vicente. Por encomenda da rainha, para ajudar as suas instituições e o espírito de caridade cristã que as sustinha, realizara Gil Vicente uma ação teatral sobre o milagre de São Martinho, em 1504, na igreja das Caldas, na procissão do Corpo de Deus. Há parentescos entre o auto de São Martinho e o PMP, e este último apresentam traços que podem ser vistos como uma inversão parodística e carnavalesca do primeiro: tal como Maria Parda o pobre (figura do próprio Cristo) começa por lamentar ou prantear a sua falta, a sua miséria, e também pede. Se São Martinho, na boa ação que realiza em cena, tematiza a virtude da caridade institucionalizada (as Misericórdias), os taberneiros poderão representar o vício avareza e não apenas a crise econômica.
Um dos taberneiros é um cristão-novo e todos usam sentenças economicistas, relativas à poupança e aos preços. Ao colocar programaticamente dois provérbios em cada uma das cópias correspondente a cada uma das falas dos
taberneiros, Gil Vicente conjuga oportunamente, como é regra na sua produção artística, o virtuosismo retórico do constrangimento poético, a que se obriga, com a caracterização judaizante e materialista das personagens dos vendedores.
As prosopopéias animais são tradições medieval. No PMP, mais realista e usando de outra invenção ou estratagema ficcional, igualmente tradicional __ o travestissement goliardesco __, é digna de nota a multiplicação das referências a preços e medidas: tão alta está a canada, de crecerem as medidas, cento e um cinquinho, a dezaseis o dão, sete mil custou à pipa, etc.
Esta será uma hipótese de sentido para a obra vicentina: a sátira à carestia, a queixa pela fome, o apelo à caridade. Outra se lhe pode opor: em época de escassez, Maria Parda representa o desgoverno, o gasto excessivo com vícios terrenos, ou mesmo o pecado; os taberneiros, por oposição, são figuras que representam uma certa prudência, baseada na sabedoria proverbial popular. A morte final de Maria Parda seria como que o castigo da sua dissipação.
A haver sátira, o PMP terá sido composto nos começos de 1522 ou no fim do mesmo ano, pois é obra de Inverno: Maria Parda diz que despejei nestes frios, referindo-se ao vinho já bebido por si, o que lembra um Inverno adiantado. Se realmente o PMP se prestou à atividade teatral, a determinação da época do ano não é inútil, dado que o teatro vicentino procedia quase sempre de festas e celebrações, querem extemporâneas e pontuais, quer cíclicas as de natureza agrária e religiosa.
Em finais de Dezembro de 1522 andava a Câmara a dialogar com o rei acerca
da imposição nova que até então vigorava sobre o vinho, e que D. João III resolveu retirar (a 30 de Dezembro), mas que a Câmara propôs se mantivesse por troca com o imposto ou a dedução sobre o pão importado. Alegavam os vereadores que a imposição nova sobre o vinho, do tempo de D. Manuel, era mais fácil de suportar que a dita necessidade do pão, já que na cidade de Lisboa existia abastança de vinho e assim em todas as comarcas e tal imposição havia sempre dedução leve de sofrer aos vereadores. Terá o PMP algo a ver com este negócio? É muito possível, sobretudo porque o referente Lisboa está bem patente ao longo da obra. Mas se alastrava a abundância de vinho no final de Dezembro de 1522, que sentido tinha um pranto sobre a sua falta, ainda que face cioso e alegórico? Mais parece obra de Quaresma ou de Carnaval, época que se iniciava nas matinas do Natal (de 1521, neste caso) e percorria as festas de Janeiro até a Quaresma, incluindo a quarta-feira de Cinza e a Mi-carême.
Quanto à localização deste eventual auto, a própria Maria Parda a indica, ainda que de modo impreciso: “d’aqui da sé” (261b). Não sabemos se aponta para o bairro da Sé, i.e., para uma rua ou praça dessa zona, se para o adro da Catedral, se para o seu interior, se para um claustro. Lembro, como sugestão, que uma das capelas do claustro era então a sede da irmandade da Misericórdia. Sob invocação de N.ª S.ª da Piedade, era essa capela chamada da Terra Solta, pois nela se praticava a devoção anual do enterro dos pobres. Note-se que o PMP encena um pedido de piedade e um enterro: Maria Parda vai morrer e faz as disposições para o seu funeral.
A datação intratextual leva a pensar que o mais antigo folheto conhecido deverá ter circulado exatamente nesse ano de 1522.
E que dizer das impressões posteriores em folhas volantes? São elas de 1619 (perdida), de 1643, de 1645 e de 1665. Em todas estas datas faltava o pão na cidade de Lisboa e a população sofria grande carga tributária, o que mostra bem a oportunidade do PMP em tempos de crise. Mas, ao contrário do que aconteceu em 1522, em 1619 e ainda em 1665 houve legislação específica sobre o preço do vinho, o que terá favorecido a leitura do PMP à letra, ou seja, como obra sobre o vinho e não como metáfora carnavalesca. Em 23 de Maio de 1619 foi permitida a subida de preço do vinho, o que conduzia sempre à carestia gananciosa; em 1643, Dezembro, um decreto sobre o preço do vinho em Lisboa alude à esterilidade geral das vinhas; a 10 de Novembro de 1665 foi proibida a venda de vinho em Lisboa, até ao primeiro de Dezembro, por causa das grandes doenças que na cidade se padecem. Havia sempre interesses contraditórios na fixação do preço do vinho, feita a 10 de Novembro de cada ano, ou seja, na véspera de S. Martinho: por um lado, o consumidor, por outro, o lavrador, e por outro, o taberneiro, sendo sempre este o mais interessado no aumento do preço, e defendendo a edilidade geralmente os primeiros.
Ao tematizar a falta e a carestia do vinho, o PMP continuava a fazer sentido em determinadas circunstâncias. Ao significar, por meio do vinho, a escassez e a falta, quer do pão, quer de algo essencial à sobrevivência humana, o PMP continua e continuará a fazer sentido.

Pranto / Diálogo / Testamento
O PMP é uma extensa composição, homogênea do ponto de vista da versificação: 369 versos de redondilha maior distribuídos por 4l estâncias ou cópias de 9 versos ou pés, por sua vez divididas sempre em dois grupos rítmicos: 4+5. Esta regularidade, própria dos monólogos dramáticos, aproxima-o das trovas e da poesia lírica e distancia-os dos autos, onde a versificação não é rigorosamente igual do começo ao final.
A esta regularidade vêm adicionar-se outras estruturas demonstrativas do virtuosismo do autor, qualidade que era então muito apreciada no trovador. O PMP foi aliás composto numa fase da arte vicentina em que o dramaturgo ensaiou o apuro literário, esmerando-se na experimentação da alta retórica e escolhido estilo, como ele próprio disse ao oferecer o D. Duardos ao jovem rei. É a época dos romances, do diálogo-monólogo em eco da comédia Rubena (3.ª cena), dos solilóquios líricos, ou árias, de D. Duardos.
Embora seja conhecida como o Pranto de Maria Parda, a obra é compósita pois integra três gêneros ou tipos enunciativos imediatamente reconhecíveis: o pranto, nomeado na rubrica, o diálogo com provérbios e o testamento, também nomeado em rubrica interlinear. São catorze estrofes de pranto: uma delas inserida no meio do diálogo, doze de diálogo, no gênero palaciano da pergunta (pedido) / resposta, e quinze estrofes de testamento, este, tal como o pranto, na voz exclusiva de Maria Parda. Dois monólogos ligados por um diálogo. Os autos vicentinos apresentam-se freqüentemente como verdadeiros mosaicos de gêneros, numa abundância manuelina sem precedentes e sem sucessão na literatura portuguesa.
O pranto ou lamentação é aqui carnavalizado, pois exerce-se sobre a morte do vinho, e não sobre a do rei, de um nobre, ou do ser amado (lamentação amorosa). Do pranto ou complacente goliardesca, freqüente noutras literaturas européias, encontramos um espécime feito por Anrique da Mota a um clérigo, com uma estrutura tripartida semelhante à vicentina. Figura ele no Cancioneiro Geral que contém também prantos sérios à morte do príncipe D. Afonso e do rei D. João II. Gil Vicente abriu com uma lamentação amorosa a comédia Rubena, de 1521, e esboçou dois curtos prantos fúnebres no interior do seu Romance à morte de D. Manuel, também de 1521, nas vozes da Infanta e da Rainha estrangeira. Mas o assunto báquico (bacanal) do PMP é único na obra vicentina __ uma experiência do autor. Há que não esquecer que o velho pranto, ou planh ou planctus, é um dos gêneros poéticos mais próximos do teatro, não só pela atuação ilógica a ele inerente, mas também pela sua inserção ritual nos cortejos fúnebres que se seguiam à morte de príncipes e de reis.
Quanto ao outro monólogo dramático, o testamento, ele é amostra isolada na produção de Gil Vicente __ outra experiência do autor. Mas é larga e chega aos nossos dias a sua tradição européia, em contrafacção paródica. Gil Vicente cumpre as regras e fórmulas deste gênero notarial (datação, itens, encomenda da alma, nomeação dos testamenteiros, disposições para o funeral, etc.).
O diálogo, de doze cópias, onde alternam as vozes de Maria Parda e dos seis taberneiros, lembra e não lembra os diálogos contidos nos autos. Como neles, surgem personagens tipificadas; mas não me recordo de encontrar mais nenhum diálogo vicentino sujeito à regra numérica de uma cópia por fala. De notar ainda outras regularidades que contribuem para a estilização dessa parte mediana do PMP, tornando-a, tal como as duas restantes que a emolduram, textos autônomos, que poderiam figurar numa antologia poética. Uma dessas regularidades consiste na presença obrigatória de dois aforismos em cada fala-estrofe dos seis taberneiros; outra, na referência à morte em cada fala--estrofe de Maria Parda. O virtuosismo de retóricas fazia parte dos hábitos da produção poética cortesã; a mestria, a dificuldade lúdica e a ostentação versificatória eram muito apreciadas e louvadas num trovador. E Gil Vicente soube mostrar-se trovador exímio em muitos dos trechos que inseriu nos seus autos. Este diálogo com provérbios pertence ao gênero perguntas e respostas das tenções poéticas dos serões palacianos, assim como ao sistema das ajudas e demais jogos florais escritos ou improvisados nesses serões.
O artificialismo literário do diálogo denuncia uma intenção cortesã, e pede um público letrado, mais do que a arraia miúda, um público leitor, mais do que espectador de teatro. O tipo de humor não é tão imediato, excessivo e primário como o de outras obras vicentinas destinadas à representação cênica. Neste sentido, e paradoxalmente, o diálogo aproximar-se-ia do estatuto poético das trovas de cancioneiro, enquanto o pranto e o testamento dele se afastariam.
Os monólogos dramáticos encontram-se distribuídos pelo teatro vicentino de diferentes modos: gozando de alguma autonomia (o do Vaqueiro, por ex.); com uma função prologal (a pregação na Mofina, o sonho no Templo de Apolo, o Pater Noster trobado no Velho da Horta, os prognósticos na Exortação); incorporados no interior dos autos (a ladainha no Velho, o sermão de amor nas Fadas, as pragas em Quem tem Farelos?). Todas essas falas monologais são, no entanto, mais breves que as de Maria Parda. O fator memória teria o seu peso. Para os monólogos dramáticos recomendavam os contemporâneos uma extensão que não excedesse as cem linhas ou versos (Aubailly, 97). Não é o caso do PMP pois, quer no pranto quer no testamento, ultrapassa esse número. Não é também o que se passa na Pregação de Abrantes, com os seus quase quatrocentos versos de arte maior: sabemos, pela rubrica, que foram recitados de memória pelo autor.
Convirá não duvidar das memórias de então, quer as de autor quer as de actor, e Gil Vicente exerceu ambos os papéis. Também o escudeiro referido na Aulegrafia de J. Ferreira de Vasconcelos sabia de cor as trovas de Maria Parda. Se Gil Vicente disse o sermão em Abrantes, afigura-se-me verossímil que possa ter pronunciado com a sua voz a fala de Maria Parda, com ou sem o seu corpo de actor (um manequim ou bonifrate não é de excluir, neste caso). Os mecanismos ou as técnicas oratórias de memorização estão patentes em ambos os textos: a rigorosa divisão macrotextual, o uso dos lugares, e a anáfora sistemática, no início do verso e no da estrofe, quer literal quer semântica, quer referencial quer discursiva (apóstrofes às ruas de Lisboa,nomeação dos taberneiros, enumeração das vontades fúnebres e das zonas de vinho, em parada monumental). Mas o PMP exige talvez um maior grau de fingimento que o sermão sobre a peste: neste havia apenas uma fala moral, enquanto naquele Maria Parda existe como personagem em situação, não só enunciativa mas também diegética.

Unidades dramáticas
l. Personagens
Maria Parda é personagem feminina, o que é raro no gênero monólogo dramático de então. Ela faz parte das comadres vicentinas velhas, todas personagens de teatro. A linguagem e a sua posição enunciativa __ um estado elementar de necessidade, uma atitude pulsional __ assemelham-se às da mãe de Isabel em Quem tem Farelos? e às velhas do auto da Festa e do Triunfo do Inverno. Maria Parda sofre ainda a caracterização de beberrona, o que não acontece com as suas congêneres, sendo suporte de uma série de traços goliárdicos (devassos) (a solidariedade das tabernas, os seus queridos manos e manas).
Se juntarmos tudo o que vai caracterizando Maria Parda obteremos um conjunto extraordinariamente variado: além do traje (a nudez e o manto), e da descrição realista do corpo velho e doente, existe a linguagem figurativa (repetições, trocadilhos, exageros, ironia), a mistura de níveis ou registros (da retórica cortesã à mais vernácula obscenidade), a forma arcaizante da segunda pessoa do plural (socorrede-me), as insistências num campo semântico muito primário (comida, doenças, preços, roupa), e uma riquíssima variedade ilocutória (lamento, pragas, apóstrofes animizadoras, exclamações, processos de sedução, pedido, grito, promessa). Note-se que não se trata de uma personagem de negra, quando muito uma Maria Mulata, pois que não existe qualquer fórmula específica da língua de preto, já então codificada. Mas o que fica sem resposta segura é o seguinte: terá havido um corpo de ator (Gil Vicente?) a representar este corpo?
Se olharmos de perto cada um dos seis taberneiros, com falas de apenas nove versos, dos quais três ou quatro são obrigatoriamente ocupados com provérbios, deparamos com uma caracterização bem concreta de alguns deles: a Falula mostra-se grosseira, João Cavaleiro é cristão-novo, Branca Leda só fala de comida. Estes taberneiros lisboetas funcionam ainda, note-se, como uma espécie de coro que comenta as súplicas de Maria Parda.

2. Ações
O PMP não é apenas uma fala deliberada numa situação ficcional. A fala vem acompanhada de ações a delinearem um breve enredo, se bem que simplicíssimo, e essas ações são predominantemente verbais:
1ª a queixa pelo mau presente, com evocação do bem passado;
2ª a decisão de pedir fiado;
3ª o ato de pedir;
4ª a recusa dos taberneiros (repetição em alternância destas duas ações, por seis vezes);
5ª a decisão de morrer;
6ª a ordenação do testamento.
Todas as ações ocorrem em presença, tal como o discurso direto das personagens, e implicam um desfecho no futuro: Maria Parda irá morrer. Prevalece a mimese e a exibição sobre a revelação, ao contrário do que acontece em muitos dos monólogos dramáticos europeus, que são falas narrativas.
Assistimos a passeios e cortejos de Maria Parda pelas ruas dos bairros orientais de Lisboa, ou, ao invés, ao desfile dessas ruas, magicamente convocadas pela aflitiva apóstrofe de Maria Parda ao nomeá-las: Rua de S. Gião, Travessa de Mata-Porcos, carnicerias, Rua da Ferraria, Biscainha, etc. Usando máquinas, poder-se-ia fazer rodar diante dos olhos do espectador cada uma das ruas e tabernas interpeladas em cada estrofe. Seriam as praças e vielas a passar por Maria Parda e não esta a atravessá-las. Mas também ela se move, segundo informam algumas didecássilabas, na seqüência da decisão quero m’ir às taverneiras (260b): Vai-se a Branca leda, Vai-se a João do Lumiar, indo pera casa de Martim alho.
Ocorre aqui o argumento de natureza extratextual a favor da teatralidade intrínseca desta peça vicentina. A similaridade existente entre esta estrutura de deslocação cênica e a cerimônia dos prantos fúnebres na capital, em Dezembro de 1521, quando morreu D. Manuel: o cortejo desfilava por certas ruas de Lisboa e parava em pelo menos três lugares definidos, onde se quebravam os escudos (equivalentes sérios, não carnavalescos, das tabernas que Maria Parda visita); os trajes eram mantos negros (Maria Parda vai emburilhada numa manta); e grandes eram as manifestações de dor (não menores que as de Maria Parda). Vem ao pensamento à comparação entre o PMP e o pranto de D. Manuel, do qual aquele seria então uma espécie de reverso parodístico, irreverente, cômico e satírico.

3. Dícticos (elementos do discurso)
Para lá dos virtuais movimentos cênicos, derivados da intriga, que implicam quer um espaço visível, quer uma duração, sobressai nos enunciados a presença material do corpo de Maria Parda, para cujas partes ela mesma chama repetitivamente a atenção e os olhos do espectador: a falta de dentes, as gengivas, os braços, os beiços, as orelhas, as queixadas. Acresce que esses fragmentos do organismo são animizados, pois tornam-se eventuais interlocutores, dramaticamente apostrofados. O mesmo acontece com as ruas de Lisboa, as pipas de vinho ou as manas bebedoras (ausentes): todos são compelidos a gritar e a lamentar-se. Também na sua lamentação o pobre do auto de S. Martinho se endereçava às partes doentes do seu corpo. Maria Parda estimula esse corpo a exprimir-se:
ó gengibas e arnelas
deitai babas de secura.
Carpi-vos beiços coitados
Acompanha toda esta agitação dramática, própria do código genológico (teoria dos gêneros literários) do pranto, o efeito de presença criado pelos dícticos estas, esta, estes e aqui, assim como as referências à indumentária e a alguns adereços cênicos: estas queixadas, esta erra verde pereira / em que vos eu via estar, Amara aqui hei d’estalar / nesta manta emburilhada, que despejei nestes frios, d’aqui da sé, no beiço de baixo aqui.

4. Tempo e ausência
Esta tão acentuada presença contrasta significativamente com o tema da falta
e da ausência. Ausentes os tempos passados e as tabernas da Lisboa antiga, cheia de vinho; ausentes os tempos futuros de ofícios fúnebres, no pós-morte,
também eles cheios de vinho.
O que está presente em cena é a ausência, o vazio, e a sede __ seja no corpo de Maria Parda, ressequido, sem roupa, sem dentes e tão leve e aéreo, seja no tempo e no espaço: as pipas ocas, e o momento de necessidade. O que está ausente é o de que Maria Parda constantemente fala, recordando o passado e incitando a um futuro de plenitude. Ao nomear a ausência, convoca-a magicamente a uma presença absorvente, excessiva e sobrerreal: o vinho, os tempos utópicos de abundância, o espaço lisboeta das tabernas e demais territórios vinícolas de Portugal. Esta presença fantasmagórica do vinho agiganta-se no pranto, e sobretudo no testamento, verdadeiro triunfo do vinho.

No pranto, por três formas:
l.º por nomeação e interpelação direta e afetiva: ó vinho mano meu vinho, ó bicos de minha mama;
2.º pela metonímia realista, pois todos os objetos chamados à presença são recipientes ou lugares de vinho, mas sem ele, desde as medidas, às pipas vazias e aos tornos quebrados, desde os taberneiros que não vendem às partes do corpo onde devia passar o vinho (goelas, gorgomilo);
3.º pelo desenvolvimento do topos da passada idade de ouro e de abundância, um tempo vivido em gloriosa solidariedade: o frenesi da evocação báquica equivale ao estado lancinante de sede e de secura, a cada passo reiterado dum modo naturalista, como se vai ver.
Quanto ao testamento, nele se visiona um futuro de fartura, pois só o presente é de crise e de falta, personificadas na própria Maria Parda. Daí a quantificação hiperbólica, a acumulação cada vez mais excessiva de tudo o que diz respeito ao vinho, no gênero copioso do banquete fúnebre, de origem pagã, a contrastar com o grotesco e a escassez dos legados de Maria Parda __ trapos e uma borracha. A estrutura do testamento é enumerativa e acumulativa; predominam os plurais, assim como o sempre, o amiúde; e o exagero numérico vai em crescendo (trinta e seis odres, quatro ou cinco ou dez trintairos, cento e vinte e sete vigários). Também a dessacralização devassa atinge, não um ou dois objetos, mas grande quantidade: os turíbulos, as tochas, o ataúde, a água benta e o próprio Deus convertem-se em borrachas, cepas, pipas, malvasia e Noé. Maria Parda pinta um universo desmesurado, a transbordar de vinho: sacerdotes todos bêbedos, escudeiros e barqueiros recozidos, órfãs de pais alcoólicos, etc.
Só numa cena futura o mundo poderá apresentar-se fértil e pujante de vinho. E, mais importante, só após a morte de Maria Parda, cujo corpo terá de perecer. Trata-se então de uma morte sacrificial, em toda esta paródia de tragédia: a minhoca que puseram a secar no começo deste auto irá ao final, para as estrelas altas e longínquas __ da terra para o céu __ mas com grande sede, como diz o último verso.

Naturalismo e simbolismo
l. O corpo grotesco e pardo da terra
No PMP sobressai a figuração da velhice. À personagem convencional do clérigo beberrão preferiu Gil Vicente a da velha, menos apta para a sátira e mais naturalista. Personagem da tradição popular (em Itália, por ex., nos cantos de vinho; em Portugal, na festa de Santa Bebiana), não é aqui apenas um tipo cômico, ou de farsa, semelhante a outras comadres velhas, mas é essencialmente um corpo seco, pronto para morrer. Dele emana uma fala que funciona como o seu prolongamento, a sua expressão fisiológica e natural. Este corpo velho encontramo-lo num outro auto vicentino, o Triunfo do Inverno, onde se evoca um rito de passagem. A velha que atravessa descalça a serra nevada, para casar com um mancebo tão bem feito / que é uma consolação, personifica o Inverno a que se seguirá a Primavera. É descrita como corcovada e enrugada, com as gengibas inchadas. Dela se diz: No sentis que sois ya tierra? E ela própria acaba exclamando, tal como a Maria Parda ao ir vazia para as estrelas: que vou cada vez mais leve (178b).
O corpo de Maria Parda mostra-se grotesco; envelhecido (triste desdentada escura, arnelas, orelhas engelhadas), doente (mazelas, olhos fora, postema no beiço, a dor da enxaqueca) e, acima de tudo, oco e seco (deitai babas de secura, ventosidade, hei de estalar, tão seco trago o embigo, morrer de sequia, assi vazia, sem gota de sangue nas veias, não tens já que mijar). Predomina o motivo da sede e da secura, que se estende a todas as coisas e seres: os tonéis secos, a louça e as pipas vazias, a Ribeira areeira.
Impossível não estabelecer o paralelo entre as palavras de Frei Luís de Sousa
ao evocar tanto a fome de 1522, quanto a seca e a esterilidade de 1521 que a provocaram: As terras delgadas se desfaziam em cinza; as grossas se apertavam e abriam em fendas até o centro (Anais, L. I, cap. XI). Assemelham-se as imagens do corpo gretado da terra e do de Maria Parda, até na cor cinza. Ao evidenciar o corpo da velha, Gil Vicente naturaliza-o e identifica-o simbolicamente com a própria terra que se encontra velha, doente, seca e parda, a necessitar de ser renovada com o líquido regenerador: a água.
Repare-se que as partes e as funções orgânicas nomeadas são sempre as correspondentes a necessidades primárias e naturais: as escatológicas (ventosidade, traques, mijar) e as alimentares (beiço, gorgomilo, engolir, fartar a tripa).
Sistemáticas são também as referências vegetais à árvore vital, associada à presença do vinho nas tabernas, com a nomeação dos seus ramos, da sua verdura e até das suas espécies (pereira, pinho, maias). Essa árvore aparece gravada nas vinhetas de quase todos os folhetos impressos. Ela e o corpo de Maria Parda, bem como os seus ditos, assinalam o ciclo da vida, do nascimento à morte, passando pela doença: que má hora me paristes, bicos de minha mama, a madre caída, os tramos da peste. Nos três versos que se seguem, patenteia-se o contraste e a proximidade entre a vida e a morte:
com esta sede tão viva
que já não acho cativa
gota de sangue nas veas.
Também a terra não acha o humor, o suco subterrâneo que fará germinar o seu grão, ou seja, a chuva que terá que cair do céu.
O ciclo da vida humana, aqui rematado com a morte de sequia, aparece intimamente ligado com o da vegetação e o das estações do ano, próprios da natureza agrícola e designados segundo o ciclo litúrgico: avento, nacimento, carisma, paixão, verão, eiras.

2. A morte da seca e o vinho da vida
A tematização da morte, em todos os níveis de elaboração do PMP, afasta esta obra de outras composições de teor meramente goliárdico ou de sátira social, e aproxima-a das manifestações simbólicas de origem folclórica e ritual. Em Gil Vicente casam-se certos comportamentos naturalistas, próprios da festa e do teatro, onde se manifesta a herança ancestral de ritos que começaram por ser sagrados e agrários, com a mais apurada retórica cortesã (o virtuosismo do trovador-poeta) e ainda com as necessidades de circunstância, muitas vezes de intervenção satírica (caso da crítica à carestia ou então ao esbanjamento financeiro e aos excessos da carne).
Encontramos o tema da morte, em primeiro lugar, no plano enunciativo: o pranto, o diálogo __ derradeiro debate ou agon (debate verbal das personagens) __ e o testamento. Em segundo lugar, no plano narrativo: a doença da falta só acabará com a morte, no pós-morte. Em terceiro lugar, no plano semântico e vocabular: Maria Parda alude repetidas vezes à morte, pela referência à candeia de azeite (rito de morte mas também metáfora do vinho), e, no testamento, abunda o léxico fúnebre.
É sabido que o teatro deu continuidade ao simbolismo dos ritos agrários e à sua imitação lúdica, como a deu aos grandes temas da luta e sucessão entre a morte e a vida, entre as calamidades e a expulsão do mal pela morte, entendida como sacrifício propiciatório à resolução de uma grande desgraça coletiva. Neste caso seria a seca da terra e a fome dos moradores de Lisboa e dos que chegavam à capital em busca de pão, morrendo nas suas ruas. Se Maria Parda pode figurar um dos esfomeados que Lisboa tem o dever de alimentar ou, pelo menos, de enterrar, também pode figurar o herói pecador da tragédia, aqui carnavalizado num pathos sacrificial parodístico. Os manequins de Carnaval funcionavam muitas vezes como simulacro do bode expiatório dos pecados de uma comunidade.
Do cruzamento de todas estas linhas de significação pode concluir-se que o PMP realiza a personificação alegórica e a dramatização do próprio ciclo da vida e da morte, incluindo as catástrofes naturais, sociais e econômicas: estas últimas como que se naturalizam. Igual procedimento simbólico encontra-se na raiz da Mofina Mendes, personificação teatral não só da má sorte natural mas também do desgoverno e esvaziamento dos cofres reais (a burra, o gado perdido), tudo a necessitar de remédio __ neste caso ele virá da intervenção divina do Redentor, pois o auto de Mofina é de Natal e representa o mistério.
Para que a chuva apareça, a terra frutifique, a vida renasça, Maria Parda terá que perecer, pois encarna tanto a fome coletiva como a terra velha e exangue, o ano seco e estéril, a própria morte. Neste sentido, a morte de Maria Parda, no inverno de 1522, adquire o valor catártico de afastar o mal da seca e de atrair o bem da chuva. Então poderá brotar a abundância, pintada em dimensão gigante no apoteótico testamento de vinho. O vinho estará pela própria vida __ o sangue nas veias que falta à Maria Parda __ e não só pelo pão necessário à vida.
O registro goliárdico, fator de carnavalização proveniente da tradição já popularizada dos cânticos báquicos (orgíacos), possui um valor alegórico e não só literal. O tema báquico, que tão bem se ajusta a umas trovas e que lhes confere grande coesão teatral e literária, revela afinal as suas origens teatrais. Não era Dionísio ao mesmo tempo o pai do teatro e o pai da vinha? E não era o vinho o sangue da terra?

As festas e a paródia
Ritos e invenções jocosas como a luta entre as estações, ou entre o ano velho e o novo, ou entre o Carnaval e a Quaresma, vêm sugeridas de forma subliminar neste auto. Em António Prestes, Maria Parda surge contraposta ao ano bom: n’um [portal] pintar-lhe o ano bom / n’outro maria parda (1587, 9c).
A busca dum futuro de felicidade pela representação duma sociedade em crise, ruptura ou luta __ aqui o drama de Maria Parda, gastadora e necessitada, e a sua discussão com os taberneiros, sovinas e prudentes __ é intenção própria dum teatro cujo fundo é ritualístico. No testamento, os legados e as vontades fúnebres podem exprimir aspirações coletivas. Assim acontece nos testamentos facetos e burlescos, lidos em voz alta, que acompanham, em Portugal, o enterro do João e do Entrudo, ou a serração da Velha (Veiga de Oliveira, 1984). Apresentam o mesmo carácter excessivo e exuberante, a mesma técnica acumulativa, a mesma estrutura de desfile, o mesmo registro de licenciosidade e de transgressão carnavalesca. São ditos em festas que correspondem a ritos de passagem: do Inverno para a Primavera, do Entrudo __ tempo de dissipação, satisfação e desmedida __ para a Quaresma __ época em que a semente deverá germinar. Segundo a lógica do pensamento mágico, a germinação é favorecida pelo fim do desregramento, do tempo dos prazeres e excessos da carne, e pela abstenção alimentar, pela guarda, às quais podemos associar Maria Parda e a sua abstinência forçada.
Os demais componentes de carácter ritual, cujo fundo pagão e mágico se mistura com elementos cristãos, vão desde as ações enunciativas __ súplicas, lamentações, maldições, exortações __ até às personificações ou às apoteoses e triunfos __ aqui os do vinho e da abundância __ e ao sacrifício __ a morte de Maria Parda.
Ao contrário do que acontece, por ex., com Anrique da Mota, Gil Vicente trabalha neste, tal como noutros autos, sobre elementos originários das manifestações teatrais de carácter festivo e coletivo.
O modo processional patente em toda a obra, a todos os seus níveis, assim como as manifestações de pranto e, depois, de últimas vontades são também típicos dessas festividades. Lembro algumas:
a) o São Martinho (11/Nov.), festa que inaugurava o Inverno na antiga liturgia moçárabe (liturgia praticada pelos cristãos ibéricos), anterior a Gil Vicente: aparece o vinho novo, festejado por vezes com cortejos de bêbedos; na véspera era decidido pela Câmara de Lisboa o preço da venda do vinho nas tabernas (pelo menos nos séc. XVI e XVII);
b) a Santa Bebiana (2/Dez.), advogada das mulheres bêbedas: realizam-se, em certas aldeias, desfiles que afixam as confrarias dos irmãos do vinho;
c) o Natal e a sua oitava, ou os Reis, ocasião em que se bebia bastante e período de liberdade licenciosa, propício a paródias;
d) a passagem do ano, quando se deixa o velho e se fazem votos para o novo, o ano bom (o que estaria de acordo com o passo atrás citado de António Prestes);
e) também nas Janeiras se efetuam cortejos e se fazem pedidos;
f) São Vicente, patrono de Lisboa, com festa em 22 de Janeiro;
g) no Carnaval, a celebração ritual do enterro do Entrudo ou do João, por vezes já na Quarta-Feira de Cinzas;
h) a serração da Velha, celebrada a meio da Quaresma, é um intervalo festivo em que a vítima é uma velha; modernamente inclui a leitura dum testamento em verso.
Além de conter unidades comuns às invenções que preenchem todas estas festas, o PMP serve ainda em todas as épocas de aflição, de miséria, de falta de víveres, de aumento dos preços, ou ainda nas de puro divertimento. A paródia por rebaixamento do sublime, do trágico, do sério e do sagrado, é ingrediente obrigatório dessas manifestações coletivas, e não falta no caso do PMP:
__ o luto que se pranteia não se refere a uma pessoa régia ou nobre, mas ao
vinho, exprimindo uma necessidade carnal, fisiológica e primária;
__ as fórmulas literárias próprias das lamentações amorosas e dos prantos régios vêm misturadas com grosserias, pragas e alusões escatológicas: todos os traques que dou / são suspiros de saudade;
__ as referências religiosas ao Natal e à Paixão de Cristo trazem a lembrança
do vinho (a paixão dos tornos);
__ no testamento, a dessacralização pela paródia litúrgica é total: da tradicional divinização de Noé até às romarias de vinho, à borracha por turíbulo, aos vigários bêbedos, à água benta nas vinhas.
A haver representação destas trovas, ou seja, a haver ato ou auto, ele ocorreria certamente num período de permissividade e de festa.
Tudo isto nos fala de teatro. Não significa que o PMP tenha constituído uma ação teatral vicentina, ainda que fosse texto praticado então, ou pelo menos sabido de cor por escudeiros amantes de teatro. Mas significa que tinha, e tem, todas as  condições para ser teatro, pois, como aqui tentei mostrar, exibe a presença dum corpo, que tanto pode representar um triunfo báquico, como a falta de vinho, tanto a fome, como a sátira à carestia e à ganância, tanto a abstinência quaresmal, como o castigo dos excessos perdulários da carne, tanto a caridade, como a necessidade de contenção econômica, e ainda a terra exangue, a seca, a velhice, a morte, a doença, o ano velho, a cidade de Lisboa, ou um sacrifício fúnebre ritual, carnavalizado. Além disso é eminentemente adaptável às festas e funções coletivas, quer cíclicas, quer críticas. Nelas, a natureza primária, a organização social e as práticas culturais e simbólicas intervêm conjugadamente, mostrando o ser humano em toda a plenitude da sua crise e da sua necessidade. Tal como Maria Parda __ a minhoca que puseram

O "Pranto de Maria Parda"

Este monólogo é uma "lamentação" posta na boca de uma velha bêbeda que, além disso, é mulata (e por isso se chama "Parda") - personagem "que viu as ruas de Lisboa com tão poucos ramos nas tavernas e o vinho tão caro, e ela não podia viver sem ele".
Escrito em 1522, este monólogo veio a ser muito popular e teve numerosas reedições.(...) Houve em 1522 uma terrível fome no reino. Os camponeses esfaimados morriam ao longo dos caminhos. A falta de vinho relaciona-se portanto, com a falta vê víveres em geral. Integrado neste contexto, o Pranto de Maria Parda reveste toda a sua significação. (...) Como não ver que Maria Parda a morrer à sede, é a imagem invertida dos desgraçados que morriam à fome? Mas Maria Parda é uma velha, uma bêbeda, e mais ainda: uma mulata. Por isso é necessariamente ridícula. O seu desespero é cômico, o seu testemunho burlesco. Faz rir - e isso é uma maneira de exorcizar o drama da fome. O Pranto de Maria Parda, por conseguinte, é uma paródia. Este texto pertence ao "mundo às avessas". No estilo da chocarrice popular, esconjura e elimina o sofrimento e a morte.

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