quarta-feira, 16 de maio de 2012

QUE BOM MARIDO - de MARQUES DE CARVALHO

Marques de Carvalho
João Marques de Carvalho (1866 — Nice, 11 de abril de 1910) foi um escritor, diplomata e jornalista paraense. É autor da obra naturalista Hortênsia, de 1888, ambientada em Belém
Em 1879, embarca para Lisboa a fim de continuar os estudos de humanidades. Dois anos depois se transfere para a França. Volta ao Pará, em 1884, iniciando a carreira de jornalista como colaborador do Diário de Belém. Rompe no ano seguinte com esse periódico pela recusa em publicarem o conto "Que bom marido!", declarado imoral. No dia seguinte A Província do Pará o publica. Mais tarde, esse trabalho aparece em Contos Paraenses, 1889, páginas: 45-53.
Em 3 de setembro é representada no Teatro Cosmopolita a comédia em um ato Entre Parentes..., na festa da atriz Aurora de Freitas.
Em 1887, é um dos fundadores e redator-chefe do diário Comércio do Pará.
Em 1888, publica sua obra máxima, Hortênsia, um romance naturalista que retrata um incesto entre dois irmãos. Foi impresso na tipografia da Livraria Moderna, em Belém. Foi reeditado, em 1989, e por último em 1997.
Em 1891, sendo ministro das Relações Exteriores (1891 a 1893) o paraense Justo Leite Chermont, inicia a carreira diplomática como cônsul brasileiro em Georgetown. No ano seguinte é transferido para Assunção como segundo-secretário de legação.
Em 1894, é transferido para Montevidéu como primeiro-secretário. Um ano depois vai para Buenos Aires como encarregado dos negócios. Em 1896, é demitido de suas funções por interferência do ministro Fernando Abbott, que o acusa dos crimes de peculato e estelionato. Volta então para Belém, reiniciando as atividades jornalísticas em A Província do Pará.
Em 1897, vai ao Rio de Janeiro para defender-se da acusação imposta ficando preso no quartel da Brigada Policial.
Em 1898, é condenado por peculato, grau médio, no Supremo Tribunal Federal. Por intermédio de seu advogado, é absolvido no ano seguinte.
Em 1900, funda a Academia Paraense de Letras, que só irá se estabelecer de fato em 1913. Achando-se doente, fixa residência em Nice, onde falece.

CONTOS PARAENSES
J. MARQUES DE CARVALHO

Que bom marido!

A Juvenal Tavares

Não desejarás a mulher do teu proximo.
              MANDAMENTO DE DEUS.
Havia já três anos que estavam casados. Não tinham filhos. Viviam felizes, tranqüilos, na sua casinha da estrada de S. Braz, de frente pintada a cal, onde o sol da manhã brincava alegremente n'umas cintilações que davam a nota de grande prazer interno ao passeiante que para ela dirigisse escrutador olhar.
Ele era um velho quarentão, amanuense de secretaría, obeso, rubicundo, de rosto espalmado e barbas hirsutas e grisalhas. A mocidade que tivera — tempestuosa e poída nas orgias, — encanecera-lhe completamente os cabelos da cabeça, os quaes desciam para o rosto, onde se cruzavam numerosas rugas sobre a pela cor de ginja.
Ella tinha dezoito primaveras, — para me servir d'uma velha expressão do romantismo; - ostentava uma carinha faceira, risonha, d'olhos pretos e marotos. Tez morena e aveludada. Um sorriso excitantemente encantador descerrava-lhe os lábios vermelhos, mostrando duas filas de dentes mais alvos do que os de um cão da Terra-Nova. O corpo, flexível como a haste da angélica, era ágil e dotado de sedutores meneios, que impressionavam bem profundamente a mais de meia-duzia de gamenhos vadios, — d'esses namoradores enfatuados que abundam por toda a parte.
O seu regime de vida era, invariavelmente, este: de manhã, ás 8 horas, depois do respectivo e parco almoço, o sr. Bonifacio escovava com a manga da sobrecasaca o solene chapéu alto, dava um chocho á mulher e saía para a repartição com o passo do empregado publico: — impassível e cadenciado.
Elvira acompanhava o esposo até á porta da rua, fazia-lhe uma pequena caricia e voltava á varanda, a fim de dar algumas ordens acerca do jantar. Dispostas as coisas para a segunda refeição, ia sentar-se á máquina de costura, que lhe dava não diminuta receita para as despesas diárias. O ganho d'esses trabalhos e os vencimentos do sr. Bonifacio formavam uma soma bem razoável todos os meses, a qual lhes permitia de tempos a tempos o luxo d'um camarote no Teatro da Paz e um passeio a bonde em noites de luar, um vestido novo para o círio de Nazareth, algumas dúzias de pistolas e bixinhas na festa de S. João e mais outras regalias, que alegravam o gorducho amanuense e forneciam á encantadora esposa d'ele ensejo de satisfazer a sua natural vaidade de mulher bonita e nova.
Como acontece algumas vezes, a virtuosa esposa do sr. Bonifacio tinha seus adoradores, — rapazes toleirões, aos quaes Ella, diga-se a verdade, não ligava muita importância. Entre esses moços, quem mais assiduamente a requestava era um tal Jacyntho, — um leão conquistador que falava pelos cotovelos, muito tolo, ignorante de tudo, exceto da arte do namoro atrevido. Este Jacyntho apaixonára-se por Elvira poucos dias depois do casamento d'Ella, por ocasião d'um passeio a Benevides. Desde essa época, o pobre namorado sem ventura passava todas as tardes pela casa do Bonifacio, quando Elvira ia para a janela, enquanto o marido, na varanda, jogava o solo com o taberneiro da esquina e o visinho da direita. Ao passar em frente à Elvira, enviava-lhe um sorriso e um cumprimento. A esposa do honrado amanuense retribuía a este ultimo e conservava-se muito séria, muito digna, sem corresponder aquele. Passavam os dias, passavam os meses, e Jacyntho era pontual á entrevista, na qual Elvira já parecia interessar-se, pois que também não deixava de ir para a janela assim que, lá na varanda, o sr. Bonifacio, o taberneiro e o vizinho começavam no passo e no bolo. É que a interessante senhora tinha um espírito ardente, fantasista, que não podia se contentar com os sós afagos morosos e frios do velho Bonifacio. Não obstante, nenhum passo mal desejava dar. Entregava-se àquilo a que chamava "uma distração", mais para satisfazer uma vaga curiosidade do que para conter um crime.
Jacyntho não era um homem que perdesse a paciência. Assistia tranqüilo a esse esperdício de tempo, convicto do axioma que reza: "Agua mol Le em pedra dura, tanto dá até que fura." Tinha confiança no futuro, que resolveria, com vantagem, — aquele interessante problema de amor.
Uma tarde, — era em meados de junho, passou o Jacyntho, devéras admirado por ver que a sua querida não estava á janela. Olhou para os dois lados da rua e não enxergou ninguem. A estrada de S. Braz apresentava a aparência de um velho cemitério abandonado: nem um só vivente se via.
Constrangido, dispôs-se a continuar, quando avistou uma rapariguinha mulata, que saía da casa do sr. Bonifacio. Correu a ela e perguntou:
—Onde está a d. Elvira, minha filha?
A mulatinha fitou-o espantada e, curvando a cabeça para o peito, meteu na boca o índex da mão direita, conservando-se calada.
—Vamos, fala, toma um tostão.... Onde está a d. Elvira? — insistia o leão fazendo escorregar um nickel para o seio da pequena.
Esta, ao sentir o contacto da moeda, lembrou-se dos rebuçados da freguesa e disse ainda meio acanhada:
—Está lá dentro....
—E o sr. Bonifacio?
—Saiu.
—Dou-te outro nickel se flores levar uma carta á tua senhora, queres?
—Eu quero...
Jacyntho tirou do bolso uma carta que escrevera havia muito tempo e que, por cautela, não datára nem assinára. Entregou-a á mulatinha e conjuntamente outro tostão.
Depois seguiu pela estrada adiante.
Elvira não deu resposta aquela carta, que lhe revidara ao grande amor que por ela sentia o Lovelace paraense. Este não desanimou: deixou de passar pela estrada de S. Braz durante dois dias, após os quaes voltou, seguindo pelo passeio, rente á janela. Sacudiu-lhe ao colo nova epístola. Repetiu o mesmo jogo por uma semana. Finalmente, Elvira não pôde resistir mais, mandou-lhe uma carta toda cheia de temores, toda receiosa, na qual confessava que o Jacyntho não he era indiferentes, mas que devia abrir mãos áquele amor, porquanto a sua "posição de mulher casada não lhe permitia tão gratas liberdades."
D'então em diante, apesar d'esses receios continuaram as cartinhas a passar dos bolsos do Jacyntho para o seio d'Elvira e do seio d'esta para os bolsos d'aquele. É que houve uma tarde em que Elvira entrou a confrontar o physico do sr. Bonifacio com o de Jacyntho. Esse confronto e as reminiscências de muitas leituras românticas deram causa á correspondência criminosa.
Havia já alguns meses que o amor dos dois não tivera outras expansões além d'aquelas missivas platônicas. O temperamento de Jacyntho era mais exigente.
Uma tarde de dezembro, o sr. Bonifacio descia do bonde em frente de casa, de volta d'uma visita que fora fazer a seu chefe de secção. Transpondo o limiar da porta, encontrou a mulatinha que saía apressadamente, escondendo mal entre as dobras do vestido um objeto que he atraiu a atenção de velho curioso.
—Que levas ai? — perguntou.
—Não é nada... —respondeu a rapariga n'essa voz cantada peculiar aos paraenses.
—Não mintas! Eu vi não sei quê!—bradou o sr. Bonifacio puxando-a pelo braço e apoderando-se do objeto.
Era um bilhete. Abriu-o, assestou-lhe os óculos e leu:
"Meu amigo, depois d'amanhã, á meia noite, meu marido vai ouvir a missa do galo em Sant'-Anna. Finjo-me adoentada para ficar em casa, a fim de conversar com sigo e saber d'essa novidade que prometeu contar-me. Venha á 1 hora. Acautele-se bem; que ninguem o veja.
ELVIRA.
O Bonifacio subiu ao arame; ficou da côr da púrpura e sentiu uma violentíssima dor de cabeça. Teve ímpetos ardentes de ir assassinar a esposa infiel; refletiu, porém, e socorreu-se d'um alvitre que lhe apareceu a súbitas no espírito com rubros lampejos de sanguinária vingança.
—Toma, leva, — disse entregando a carta á rapariga.
E entrou.
Batem às 12 horas da noite de 24 de dezembro. Grupos folgazões de moços d'ambos os sexos passam pelas ruas de Belém em direção ás diferentes igreja onde se deve rezar a missa do gelo.
O sr. Bonifacio, que se levantou á ultima pancada das 11 horas, sai para a rua, deixando em casa a mulher incomodada "com muita dor de cabeça...."
Á 1 hora, um vulto apareceu na esquina, aproximando-se a passos ligeiros até chegar a frente ao domicilio do amanuense Bonifacio. Era o Jacyntho, que bateu pressuroso e baixinho em uma das janelas. Respondeu-lhe do interior um leve ruído. Jacyntho estremeceu de contentamento, pregoando os prazeres que ia fruir na conversação de Elvira, quando subitamente exalou um grito, dando um salto para o lado.
Era o respeitável sr. Bonifacio, que saindo de traz da mangueira onde se ocultara, desancava a bom desancar o peralvilho que tivera a lembrança de namorar-lhe a mulher.
Quando Jacyntho saltou para o meio da rua, recorreu o sr. Bonifacio á pouca agilidade que ainda possuía e acompanhou-o, continuando a sová-lo fortemente, n'uma agitação febril....
O pobre rapaz gritava dolorosamente. Ninguem acudiu-lhe: todos os vizinhos haviam saído para a missa do galo.
Quando cansou, quando os braços negaram-se a continuar, o honrado amanuense, despedindo olhares terríveis para todos os lados, disse ao Jacyntho, que se achava por terra, com os ossos quase moídos:
—Vá-se embora, seu tratante e tenha mais juízo! Não torne a cair na asneira de namorar moças casadas!
E retirou-se para casa, a cuja porta entreaberta estava Elvira, transida de medo.

Considerações sobre o Conto "Que bom Marido"
É um caso social que bem se poderia considerar atual. - escrito com deliciosa malícia e onde podemos admirar o poder descritivo, verdadeiro retrato, quando qualifica as personagens do conto:
"Ele era um velho quarentão, amanuense de secretaria, obeso, rubicundo, de rosto espalmado e barbas hirsutas e grisalhas. A mocidade que tivera - tempestuosa e poída nas orgias - encanecera-lhe completamente os cabelos da cabeça, os quais desciam para o rosto, onde se cruzavam numerosas rugas sob a pele cor de ginja"
"Ela tinha dezoito primaveras, - para me servir d'uma velha expressão do romantismo; - ostentava uma carinha faceira, risonha, d'olhos negros e marotos. Tez morena e aveludada. Um sorriso excitantemente encantador descerrava-lhe os lábios vermelhos, mostrando duas filas de dentes mais alvos do que os de um cão de Terra Nova. O corpo flexível, como a haste da angélica era ágil e dotado de sedutores meneios, que impressionava bem profundamente a mais de meia dúzia de gamenhos vadios - desses namorados enfatuados que abundam por toda parte".

1.     Não desejarás a mulher do teu próximo.
MANDAMENTO DE DEUS.
·        Observe a citação do 10º mandamento que cai como advertência ao exclamativo título “que bom marido!”
2.     Havia já três anos que estavam casados. Não tinham filhos. Viviam felizes, tranqüilo, na sua casinha da estrada de S. Braz, de frente pintada a cal, onde o sol da manhã brincava alegremente n'umas cintilações que davam a nota de grande prazer interno ao passeiante que para Ella dirigisse escrutador olhar.
 Observar:
       A descrição romântica e simples, “casinha” branca com sol da manhã, apesar dos encantos, eles só podem ser percebidos por um atencioso olhar (escrutador).
3.     Ele era um velho quarentão, amanuense de secretaría, obeso, rubicundo, de rosto espalmado e barbas hirsutas e grisalhas. A mocidade que tivera — tempestuosa e poída nas orgias, — encanecera-lhe completamente os cabelos da cabeça, os quaes desciam para o rosto, onde se cruzavam numerosas rugas sobre a pele cor de ginja.
       Ele é velho gordo e decrépito, puído das orgias e vermelho (cor de ginja), fruta excelente para licor, mas aqui associado ao rosto vermelho pela obesidade.
       Temos mais um personagem de aparência horrenda, vitima das conseqüências de uma vida desregrada.
4. Ella tinha dezoito primaveras, — para me servir d'uma velha expressão do romantismo; — ostentava uma carinha     faceira, risonha, d'olhos pretos e marotos. Tez morena e aveludada. Um sorriso excitantemente encantador descerrava-lhe os lábios vermelhos, mostrando duas filas de dentes mais alvos do que os de um cão da Terra-Nova. O corpo, flexível como a haste da angélica, era ágil e dotado de sedutores meneios, que impressionavam bem profundamente a mais de meia-duzia de gamenhos vadios, - d’esses namoradores enfatuados que abundam por toda a parte.
 Observemos:
        Ela jovem, faceira, risonha, olhos marotos, ágil, malemolente se contraponto x velho, gordo, hirsuto, puído.
       Referência ao mundo animal: “duas filas de dentes mais alvos do que os de um cão da Terra-Nova” – referencia ao mundo animal (zoomorfismo) - Cães Terra-Nova - uma raça de cães natural do Canadá, descendente geneticamente dos mastiffs. Sua personalidade, todavia, é diferente. O terra-nova pode ser considerado o cão mais paciente, tolerante e tranqüilo de todos. Descrito como resignado, é um bom cão de companhia, já que gosta de participar das atividades familiares e aprecia a companhia humana.
       “Flexível como haste da angélica”- essa planta é indicada para desconforto digestivo como sensação de enfartamento e flatulência, males associados à velhice.
5      A beleza e os meneios vulgares, ela só chama atenção de vadios e homens comuns.
O seu regime de vida era, invariavelmente, este: de manhã, ás 8 horas, depois do respectivo e parco almoço, o sr. Bonifacio escovava com a manga da sobrecasaca o solene chapéu alto, dava um chocho á mulher e saía para a repartição com o passo do empregado publico: — impassível e cadenciado.
         Observe:
       O parco almoço – ele comia pouco, mas era gordo.
       Expressão chocho – beijoca ou beijo insípido
       O porte orgulhoso do Sr. Bonifácio quiçá por ser um funcionário público e estar casado com um moça bonita e muito jovem.
6.     Elvira acompanhava o esposo até á porta da rua, fazia-lhe uma pequena caricia e voltava á varanda, a fim de dar algumas ordens acerca do jantar.
Observe:
       varanda - sacada/sala da frente - ela dava ordens acerca do jantar, mas estava sempre exposta para quem estivesse na rua.
7.     Dispostas as coisas para a segunda refeição, ia sentar-se á máquina de costura, que he dava não diminuta receita para as despesas diárias. O ganho d'esses trabalhos e os vencimentos do sr. Bonifacio formavam uma somar bem razoável todos os meses, a qual lhes permitia de tempos a tempos o luxo d'um camarote no teatro da Paz e um passeio a bonde em noites de luar, um vestido novo para o círio de Nazareth, algumas dúzias de pistolas e bixinhas na festa de S. João e mais outras regalias, que alegravam o gorducho amanuense e forneciam á encantadora esposa d'ele ensejo de satisfazer a sua natural vaidade de mulher bonita e nova.
Vamos observar
       Referências a Belém e suas festas religiosas– teatro da Paz/ Círio de Nazaré/ festa de São João
       Neste conto mais uma vez nos deparamos com uma mulher de postura inesperada para os padrões opressivos da Antiga Belém.
       Elvira trabalha e tem certa independência financeira, pois para usufruir de algumas regalias é necessário somar o que ela ganha com o salário do marido, ou seja, o marido não dá conta de todos os gastos.

TIPOS FEMININOS
Com apresentação desses tipos femininos – Hortência do romance Hortência era enfermeira, trabalhava fora e muito respeitada por isso, D. Joaquina do conto Desilusão, apesar de feia e cafona e prendada para as artes do casamento, era ela quem tomava a iniciativa nos romances e aqui Elvira, jovem, bonita, casada com um homem bem mais velho, que supostamente poderia dar-lhe tudo, trabalha para ajudar o marido. Ela rompe com o estereotipo da mulher prendada, voltada exclusivamente aos deveres do lar, comportamento típico da dona de casa dos finais do século XIX.
8. Como acontece algumas vezes, a virtuosa esposa do sr. Bonifacio tinha seus adoradores, — rapazes toleirões, aos quaes ela, diga-se a verdade, não ligava muita importância. Entre esses moços, quem mais assiduamente a requestava era um tal Jacyntho,—um leão conquistador que falava pelos cotovelos, muito tolo, ignorante de tudo, exceto da arte do namoro atrevido. Este Jacyntho apaixonára-se por Elvira poucos dias depois do casamento d'ela, por ocasião d'um passeio a Benevides. Desde essa época, o pobre namorado sem ventura passava todas as tardes pela casa do Bonifacio, quando Elvira ia para a janela, enquanto o marido, na varanda, jogava o solo com o taberneiro da esquina e o visinho da direita.
O que vamos observar
       Ela não dava importância aos assédios, mas ficava na janela justamente nos momentos em que o marido estava distraído jogando com a vizinhança.
       observa-se a ironia em pobre rapaz sem ventura, ora o Jacyntho era o Leão, metáfora do rei das selvas, o forte o dominador em oposição ao velho cervo, Bonifácio.
       O Leão apaixona-se por Elvira poucos dias depois do casamento dela.
       “não ligava muita importância”
9. Ao passar em frente à Elvira, enviava-lhe um sorriso e um cumprimento. A esposa do honrado amanuense retribuía a este ultimo e conservava-se muito séria, muito digna, sem corresponder áquele. Passavam os dias, passavam os meses, e Jacyntho era pontual á entrevista, na qual Elvira já parecia interessar-se, pois que também não deixava de ir para a janela assim que, lá na varanda, o sr. Bonifacio, o taberneiro e o vizinho começavam no passo e no bolo. É que a interessante senhora tinha um espírito ardente, fantasistas, que não podia se contentar com os sós afagos morosos e frios do velho Bonifacio. Não obstante, nenhum passo mal desejava dar. Entregava-se aquilo a que chamava "uma distração", mais para satisfazer uma vaga curiosidade do que para cometer um crime.
O que vamos observar:
       A postura de Elvira.
       O interesse de Elvira - a insistência do leão cercando sua presa a faz ceder.
       Ele justifica o interesse da Elvira falando dos instintos dela “É que a interessante senhora tinha um espírito ardente, fantasista, que não podia se contentar com os sós afagos morosos e frios do velho Bonifacio”.
       A distração de Elvira.
 OPOSTOS - Jacynto – jovem, Leão, conquistador, retórico, ignorante nas demais artes, mas um atrevido nas artes amorosas x Bonifácio – velho-obeso-rubicundo (avermelhado)-rosto espalmado - barbas hirsutas e grisalhas (barbas peludas, eriçada, em desalinho e pardas, mescladas - aparência cansada, cabelos brancos devido às orgias e caídos no rosto – enrugado
10. Jacyntho não era um homem que perdesse a paciência. Assistia tranqüilo a esse esperdício de tempo, convicto do axioma que reza: "Agua mole em pedra dura, tanto dá até que fura." Tinha confiança no futuro, que resolveria, com vantagem, — Aquelle interessante problema de amor.
O que vamos observar
       “Jacyntho é o leão, e o leão, como outros felinos, é um caçador oportunista”, diz o biólogo Carlos C. Alberts, da UNESP de Assis, interior de São Paulo. Significa que estuda o terreno antes de atacar, é um estrategista. Tinha convicção de que presa seria abatida – Isso no remete ao Darwinismo “na natureza só sobrevivem os mais fortes”. O autor se utiliza de um aforismo popular para provar a teoria.
11. Uma tarde, — era em meados de junho, passou o Jacyntho, devéras admirado por ver que a sua querida não estava á janela. Olhou para os dois lados da rua e não enxergou ninguem. A estrada de S. Braz apresentava a aparência de um velho cemitério abandonado: nem um só vivente se via.
 O que vamos observar
       A rua não era bonita, pois o autor a compara com um cemitério abandonado imagina-se capim alto, flores secas, grinaldas velhas, cruzes caídas e cria uma antítese – mortos do cemitérios x viventes que não se via. – quiçá para enfatizar a feiúra e a desolação do lugar – que com a ausência da Elvira da Janela foi mais acentuada.
       A casa era bonita numa rua que lembrava um cemitério
12. Constrangido, dispôs-se a continuar, quando avistou uma rapariguinha mulata, que saía da casa do sr. Bonifacio. Correu a ela e perguntou:
—Onde está a d. Elvira, minha filha?
A mulatinha fitou-o espantada e, curvando a cabeça para o peito, meteu na boca o índex da mão direita, conservando-se calada.
Vamos, fala, toma um tostão.... Onde está a d. Elvira? — insistia o leão fazendo escorregar um nickel para o seio da pequena.
Esta, ao sentir o contacto da moeda, lembrou-se dos rebuçados da freguesa e disse ainda meio acanhada:
—Está lá dentro....
—E o sr. Bonifacio?
—Saiu.
—Dou-te outro nickel se fores l levar uma carta á tua senhora, queres?
—Eu quero....
Jacyntho tirou do bolso uma carta que escrevera havia muito tempo e que, por cautela, não datára nem assinára. Entregou-a á mulatinha e conjuntamente outro tostão
 O que vamos observar:
       A mulatinha faz charme sedutor – ela curva a cabeça em direção ao peito ele coloca o dedo indicador na boca e cala-se.
       Jacynto compra-lhe resposta de forma igualmente sedutora.
       Os dissimulamentos e os disfarces da freguesa.
       Ele já tinha toda a estratégia traçada – a carta já estava escrita esperando por uma oportunidade
13.  Depois seguiu pela estrada adiante.
Elvira não deu resposta aquela carta, que lhe revelara o grande amor que por ela sentia o Lovelace paraense. Este não desanimou: deixou de passar pela estrada de S. Braz durante dois dias, após os quaes voltou, seguindo pelo passeio, rente á janela. Sacudiu-lhe ao colo nova epístola.
 O que vamos observar:
       Marcas lingüísticas - O uso do pronome demonstrativo na frase Elvira “não deu resposta aquela carta!”, cria uma sensação de que houve outras cartas de outros homens, pois ele particularizou a de Jacynto.
       O termo lovelace deriva do nome de um personagem sedutor de mulheres do romance Clarisse Harlowe (1749), de autoria do escritor inglês Samuel Richardson. - homem que usa qualquer recurso (do galanteio à lascívia) para atrair, conquistar uma mulher.
       O leão não desiste continua cercando sua presa.
14.  Repetiu o mesmo jogo por uma semana. Finalmente, Elvira não pôde resistir mais, mandou-lhe uma carta toda cheia de temores, toda receiosa, na qual confessava que o Jacyntho não lhe era indiferente, mas que devia abrir mãos áquele amor, porquanto a sua "posição de mulher casada não lhe permitia tão gratas liberdades."
 O que vamos observar:
       Ela não nega a afeição por ele, na verdade gosta das liberdades, posto assim ela alimenta as esperanças mesmo sendo casada.
       Havia já alguns meses que o amor dos dois não tivera outras expansões além d'aquelas missivas platônicas. O temperamento de Jacyntho era mais exigente.
15.  D'então em diante, apesar d'esses receios continuaram as cartinhas a passar dos bolsos do Jacyntho para o seio d'Elvira e do seio d'esta para os bolsos d'aquele. É que houve uma tarde em que Elvira entrou a confrontar o physico do sr. Bonifacio com o de Jacyntho. Esse confronto e as reminiscências de muitas leituras românticas deram causa á correspondência criminosa.
 O que vamos observar:
       O autor justifica a atitude adúltera de Elvira às leituras românticas. Joga toda a culpa do crime no romantismo
16.  Havia já alguns meses que o amor dos dois não tivera outras expansões além d'aquelas missivas platônicas. O temperamento de Jacyntho era mais exigente
Uma tarde de dezembro, o sr. Bonifacio descia do bonde em frente de casa, de volta d'uma visita que fora fazer a seu chefe de secção. Transpondo o limiar da porta, encontrou a mulatinha que saía apressadamente, escondendo mal entre as dobras do vestido um objeto que he atraiu a atenção de velho curioso.
—Que levas ai?—perguntou.
—Não é nada... — respondeu a rapariga n'essa voz cantada peculiar aos paraenses.
—Não mintas! Eu vi não sei quê!—bradou o sr. Bonifacio puxando-a pelo braço e apoderando-se do objeto.
Era um bilhete. Abriu-o, assestou-lhe os óculos e leu:
"Meu amigo, depois d'amanhã, á meia noite, meu marido vai ouvir a missa do galo em Sant'-Anna. Finjo-me adoentada para ficar em casa, a fim de conversar consigo e saber d'essa novidade que prometeu contar-me. Venha á 1 hora. Acautele-se bem; que ninguem o veja.
ELVIRA
O que vamos observar
       Observar o tempo que durou a correspondência entre eles – o Leão era paciente, mas queria mais. Elvira, ardilosamente trama para encontra o amante. Deixa os pudores e se entrega a paixão.
17. O Bonifacio subiu ao arame; ficou da cor da púrpura e sentiu uma violentíssima dor de cabeça. Teve ímpetos ardentes de ir assassinar a esposa infiel; refletiu, porém, e socorreu-se d'um alvitre que lhe apareceu a súbitas no espírito com rubros lampejos de sanguinária vingança.
—Toma, leva, — disse entregando a carta á rapariga.
E entrou.
O que vamos observar
       Embora tendo a moral açoitada e guiado por sentimentos próprios da época – vingar o adultério com sangue. Ele prefere alternativa.
       Aqui temos o clímax do conto.
       Qual será a atitude do velho cervo?
       Batem às 12 horas da noite de 24 de dezembro. Grupos folgadões de moços d'ambos os sexos passam pelas ruas de Belém em direção ás diferentes igrejas onde se deve rezar a missa do galo.
18. O sr. Bonifacio, que se levantou á ultima pancada das 11 horas, sai para a rua, deixando em casa a mulher incomodada "com muita dor de cabeça...."
O que vamos observar
       O plano que se segue é o da Elvira, mas mantém-se o suspense uma vez que o marido sabe do ardil da mulher.
19. Á 1 hora, um vulto apareceu na esquina, aproximando-se a passos ligeiros até chegar a frente ao domicilio do amanuense Bonifacio. Era o Jacyntho, que bateu pressuroso e baixinho em uma das janelas. Respondeu-lhe do interior um leve ruído. Jacyntho estremeceu de contentamento, pregoando os prazeres que ia fruir na conversação de Elvira, quando subitamente exalou um grito, dando um salto para o lado.
Era o respeitável sr. Bonifacio, que saindo de traz da mangueira onde se ocultara, desancava a bom desancar o peralvilho que tivera a lembrança de namorar-lhe a mulher.
Quando Jacyntho saltou para o meio da rua, recorreu o sr. Bonifacio á pouca agilidade que ainda possuía e acompanhou-o, continuando a sová-lo fortemente, n'uma agitação febril....
 O que vamos observar
        O leão leva uma surra do velho gordo e puído.
       A agilidade do jovem leão não foi suficiente para deter a pancadaria do velho.
20. O pobre rapaz gritava dolorosamente. Ninguem acudiu-lhe: todos os vizinhos haviam saído para a missa do galo.
Quando cansou, quando os braços negaram-se a continuar, o honrado amanuense, despedindo olhares terríveis para todos os lados, disse ao Jacyntho, que se achava por terra, com os ossos quase moídos:
—Vá-se embora, seu tratante e tenha mais juízo! Não torne a cair na asneira de namorar moças casadas!
E retirou-se para casa, a cuja porta entreaberta estava Elvira, trazida de medo.
O que vamos observar
       A inversão - o velho puído se transforma em Leão – arma uma estratégia, bate, persegue e imobiliza a presa.
       Ele vira fera e quando a presa tá no chão ele... despedindo olhares terríveis para todos os lados, tal como as feras quando com suas presas abatidas quer certificar-se de que não serão incomodas.
       Mais uma vez João Marques nos diz que as aparências enganam. A inteligência está com quem se julga mais fraco.
       O conceito de bom marido.

Um comentário:

  1. Obrigada pela postagem! Pois é dificil de encontrar sobre essas obras que é uma pena!

    ResponderExcluir