quinta-feira, 17 de maio de 2012

A Viagem do Elefante - José Saramago

José Saramago
José Saramago nasceu na vila de Azinhaga, no conselho da Golegã, de uma família de pais e avós agricultores. A sua vida é passada em grande parte em Lisboa, para onde a família se muda em 1924 – era um menino de apenas dois anos de idade. Dificuldades econômicas impedem-no de entrar na universidade. Demonstra desde cedo interesse pelos estudos e pela cultura, sendo que esta curiosidade perante o Mundo o acompanhou até a morte. Formou-se numa escola técnica. O seu primeiro emprego foi de serralheiro mecânico. Fascinado pelos livros, visitava, à noite, com grande freqüência, a Biblioteca Municipal Central — Palácio Galveias.
Aos 25 anos, publica o primeiro romance Terra do Pecado (1947), no mesmo ano de nascimento da sua filha, Violante, fruto do primeiro casamento com Ilda Reis – com quem se casou em 1944 e com quem permaneceu até 1970. Nessa época, Saramago era funcionário público. Em 1988, casar-se-ia com a jornalista e tradutora espanhola Maria del Pilar del Rio Sánchez, que conheceu em 1986 e ao lado da qual viveu até a morte. Em 1955 e para aumentar os rendimentos, começou a fazer traduções de Hegel, Tolstoi e Baudelaire, entre outros.
Depois de Terra do Pecado, Saramago apresentou ao seu editor o livro Clarabóia que, depois de rejeitado, permanece inédito até a data de hoje. Persiste, contudo, nos esforços literários e, dezenove anos depois, funcionário, então, da Editorial Estudos Cor, troca a prosa pela poesia, lançando Os Poemas Possíveis. Num espaço de cinco anos, publica, sem alarde, mais dois livros de poesia: Provavelmente Alegria (1970) e O Ano de 1993 (1975). É quando troca também de emprego, abandonando a Estudos Cor para trabalhar no Diário de Notícias (DN) e, depois, no Diário de Lisboa. Em 1975, retorna ao DN como Director-Adjunto, onde permanece por dez meses, até 25 de Novembro do mesmo ano, quando os militares portugueses intervêm na publicação (reagindo ao que consideravam os excessos da Revolução dos Cravos) demitindo vários funcionários. Demitido, Saramago resolve dedicar-se apenas à literatura, substituindo de vez o jornalista pelo ficcionista: "(…) Estava à espera de que as pedras do puzzle do destino – supondo-se que haja destino, não creio que haja – se organizassem. É preciso que cada um de nós ponha a sua própria pedra, e a que eu pus foi esta: "Não vou procurar trabalho", disse Saramago em entrevista à revista Playboy, em 1995.
Da experiência vivida nos jornais, restaram quatro crônicas: “Deste Mundo e do Outro”, 1971, “A Bagagem do Viajante”, 1973, “As Opiniões que o DL Teve”, 1974 e “Os Apontamentos”, 1976. Mas não são as crônicas, nem os contos, nem o teatro os responsáveis por fazer de Saramago um dos autores portugueses de maior destaque - esta missão está reservada aos seus romances, gênero a que retorna em 1977.
Três décadas depois de publicado Terra do Pecado, Saramago retornou ao mundo da prosa ficcional com Manual de Pintura e Caligrafia. Mas ainda não foi aí que o autor definiu o seu estilo. As marcas características do estilo Saramaguiano só apareceriam com Levantado do Chão (1980), livro no qual o autor retrata a vida de privações da população pobre do Alentejo.
Dois anos depois de Levantado do Chão (1982), surge o romance Memorial do Convento, livro que conquista definitivamente a atenção de leitores e críticos. Nele, Saramago misturou factos reais com personagens inventados: o rei D. João V e Bartolomeu de Gusmão, com a misteriosa Blimunda e o operário Baltazar, por exemplo. Os contrastes entre a opulenta aristocracia ociosa e o povo trabalhador e construtor da história servem de metáfora à medida da luta de classes marxista. A crítica brutal a uma Igreja ao serviço dos opressores inicia a exposição de uma tentativa de destruição do fenômeno religioso como devaneio humano construtor de guerras.
De 1980 a 1991, o autor trouxe a lume mais quatro romances que remetem a factos da realidade material, problematizando a interpretação da "história" oficial: O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984) - sobre as andanças do heterônimo de Fernando Pessoa por Lisboa; A Jangada de Pedra (1986) - em que se questiona o papel Ibérico na então CEE através da metáfora da Península Ibérica soltando-se da Europa e encontrando o seu lugar entre a velha Europa e a nova América; História do Cerco de Lisboa (1989) - onde um revisor é tentado a introduzir um "não" no texto histórico que corrige, mudando-lhe o sentido; e O Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991) - onde Saramago reescreve o livro sagrado sob a óptica de um Cristo que não é Deus e se revolta contra o seu destino e onde, a fundo, questiona o lugar de Deus, do cristianismo, do sofrimento e da morte.
Nos anos seguintes, entre 1995 e 2005, Saramago publicou mais seis romances, dando início a uma nova fase em que os enredos não se desenrolam mais em locais ou épocas determinados e personagens dos anais da história se ausentam: Ensaio Sobre a Cegueira (1995); Todos os Nomes (1997); A Caverna (2001); O Homem Duplicado (2002); Ensaio Sobre a Lucidez (2004); e As Intermitências da Morte (2005). Nessa fase, Saramago penetrou de maneira mais investigadora os caminhos da sociedade contemporânea, questionando a sociedade capitalista e o papel da existência humana condenada à morte.
A ida para Lanzarote conta mais sobre o escritor do que deixa transparecer a justificativa corrente (a medida sensores portuguesa). Com o gesto de afastamento rumo à ilha mais oriental das Canárias, Saramago não apenas protesta ante o cerceamento, como finca raízes num local de geografia inóspita (trata-se de uma ilha vulcânica, com pouca vegetação e nenhuma fonte de água potável). A decisão tem um carácter revelador, tanto mais se levar em conta que, neste caso, "mais oriental" significa dizer mais próximo de Portugal e do continente europeu.
Mesmo em dias de hegemonia do pensamento pró-mercado, Saramago guarda um olhar abrigado numa ilha européia mais próxima da África que do velho centro da civilização capitalista. Sempre atento às injustiças da era moderna, vigilante das mais diversas causas sociais, Saramago não se cansava de investir, usando a arma que lhe coube usar, a palavra. "Aqui na Terra a fome continua, / A miséria, o luto, e outra vez a fome.", diz o eu lírico do poema saramaguiano "Fala do Velho do Restelo ao Astronauta" (do livro Os Poemas Possíveis, editado em 1966).
Saramago faleceu no dia 18 de Junho de 2010 aos 87 anos de idade, na sua casa em Lanzarote onde residia com a mulher Pilar del Rio, vítima de leucemia crônica. O escritor estava doente havia algum tempo e o seu estado de saúde agravou-se na sua última semana de vida. O seu funeral teve honras de Estado, tendo o seu corpo sido cremado no Cemitério do Alto de São João, em Lisboa. As cinzas do escritor, foram depositadas aos pés de uma oliveira, em Lisboa em 18 de junho de 2011.[6]
A Viagem do Elefante
A Viagem do Elefante é um romance de 2008 do escritor português, Nobel de Literatura de 1998, José Saramago. A Viagem do Elefante retrata a ida de um elefante até a Áustria, mandado pelo Rei D. João III, onde será o presente de casamento do arquiduque Maximiliano da Áustria.
“A Viagem do Elefante” ambienta-se em meados do século XVI, e conta a história do elefante Solimão (ou Salomão, como é chamado depois de passar à propriedade austríaca) e seu cornaca Subhro (ou Fritz, cujo nome também é modificado, pois, enquanto tratador e guia, acompanha o elefante e os desígnios aos quais este é submetido). Solimão era propriedade do império português, e vivia um tanto quanto esquecido em Lisboa, sob os cuidados de Subhro. De pouca ou nenhuma serventia aos interesses do rei D. João III, o elefante é presenteado ao arquiduque austríaco Maximiliano II, recém casado com a filha do imperador Carlos V, que aceita o presente e imediatamente procede a mudança dos nomes de Solimão e Subhro para Salomão e Fritz. A partir de então, o narrador passará a contar a história da longa viagem empreendida por Salomão e Fritz, primeiramente de Portugal a Espanha, onde se detinha a comitiva de Maximiliano II, e de Espanha a Áustria, incluindo-se aí uma perigosa viagem marítima pelo Mediterrâneo e uma quase suicida travessia dos Alpes.
“A Viagem do Elefante” aparenta uma simplicidade e uma linearidade que parecem destoar da obra do autor; entretanto, é nas tergiversações dos personagens e do narrador que reside à maior qualidade da obra. A história serve apenas como pano de fundo para que José Saramago exercite seu mais fino humor e sua mordaz ironia à burocracia de Estado e à corrupção intrínseca dos indivíduos. Assim, não foi casual a escolha de um elefante como personagem central do livro. É Solimão (ou Salomão) que move a burocracia de um Estado inoperante, muito mais preocupado com sua perpetuação e imagem, do que com sua eficiência junto às necessidades de seu povo, e é em torno e em função dele que se destacará toda uma comitiva e para qual se contratarão funcionários que possam suprir suas necessidades particulares e tornar possível e segura sua viagem. Solimão é desta feita, o próprio Estado, cuja ineficácia burocrática José Saramago discutiu em dois outros livros. Subhro (ou Fritz), o cornaca, por sua vez, constitui-se como personagem complexo: indiano de origem, emigrou para Portugal acompanhando Solimão, a quem trata, treina e guia. Apesar de servir a seu soberano, seja este o rei português ou o arquiduque austríaco, é dado a arroubos de autonomia, e chega a contestar e ironizar seus superiores hierárquicos. Sabendo-se fundamental aos interesses do seu governo, considerando ser o único a conhecer as manhas e artimanhas de Solimão, Subhro emite suas opiniões próprias e, em nome do bem-estar do elefante (e, consecutivamente, dos interesses de Estado), chega a impor condições para a viagem. Entretanto, como todo ser humano, deixa-se levar também por seus interesses próprios e, sempre que pode, usa do Estado (no caso, Solimão) para obter lucros e benefícios pessoais, como no episódio em que passa a vender pelos do animal a uma população crédula depois de ter usado o paquiderme para forjar um milagre – uma clara referência ao momento em que a história é ambientada, quando na Europa eclodiram os movimentos da Reforma Protestante e da Contra-Reforma Católica.
Como já dissemos aqui, há quem diga que a carícia da morte devolve-nos uma leveza e um certo humor que perdemos com o transcorrer dos anos. Fato é que em “A Viagem do Elefante” encontramos um Saramago mais leve, consciente da importância da sua literatura, porém ciente, também, de que talvez já tenha dito o que havia para se dizer, e que a esta altura de sua vida e carreira importa mesmo o prazer de escrever uma boa história.
Por isso, talvez, a impressão de um Saramago sorridente que nos acomete quando fechamos o livro.
Obs. "Este conto, prefiro chamá-lo assim --melhor que romance--, é o que sempre pensei que deveria ser. A doença não mudou nada", diz Saramago, que afirmou que não deseja dramatizar "a situação do autor frustrado por algo mais forte que sua própria vontade".

Uma caminhada no século XVI, de Viena a Lisboa, de um elefante chamado Salomão, uma oferta do Rei português D. João III para o Arquiduque Maximiliano, herdeiro para o Santo Império Romano. A Viagem do Elefante, escrita não muito tempo antes da morte de Saramago em Junho, apresenta a sua única mistura de absurdo, súbita lógica, comédia tendendo para a melancolia, uma digressão que nos encaminha para efeitos inesperados.
Guiado por Subhro, o discursivo cornaca de Salomão, e escoltado por um destacamento de soldados portugueses, o elefante, a quem é permitida uma ocasional discursividade, viaja para Norte para Castelo Rodrigo, atravessa Espanha, e faz o seu caminho até Valladolid, onde é entregue a Maximiliano. O cortejo, ricamente acrescentado por cortesãos e tropas, continua por mar até Gênova, atravessa os Alpes pelo gelado Passo de Brenner, e é triunfalmente recebido em Viena.
A viagem é baseada num acontecimento histórico; e talvez Saramago tenha perdido um pouco do seu poder por ele: Os seus grandes romances inventam a sua própria história. Ensaio Sobre a Cegueira é uma espantosa parábola sobre o que acontece quando, subitamente, todos deixam de ver; em A Jangada de Pedra, Espanha e Portugal separam-se da Europa e afastam-se flutuando; em A História do Cerco de Lisboa, a inserção de um “não” por um revisor altera drasticamente três séculos de vida portuguesa. Em A Viagem do Elefante, a extraordinária história está duramente ligada ao real; isto é, faltam-lhe algumas das livres explosões do realismo mágico de Saramago. Não obstante é, na sua maioria, uma delícia.
Não é tanto por causa dos acontecimentos. Saramago reconta-os bem o suficiente, preenchendo os poucos factos com acontecimentos que inventa, por vezes respeitosamente. A importante logística é bem imaginada: os carregamentos de forragem, as tinas de água, a necessidade de encontrar mais bois para puxar. A narração torna-se mais viva na última etapa: a luta de Salomão e Subhro, acostumados ao calor indiano, para ultrapassar os traiçoeiros Alpes, subjugados pela neve.
Mesmo no seu mais extraordinário trabalho, não são as histórias o coração da escrita de Saramago. Ele usa-as para trazer à superfície as idiossincrasias das suas personagens: Vira-as ao contrário, para apanhar as moedas que caiem dos seus bolsos. Atribui-lhes ações; questiona as suas ações; coloca-os a questionar as suas ações; tem os seus animais — cães, ou aqui, um elefante — a questionar as suas ações. No velho enigma metafísico — fazer ou ser — ele está do lado do ser, e os seus maravilhosos diálogos em espiral, talentosamente traduzidos por Margaret Jull Costa, são uma céptica e radiosa interrogação sobre o fazer.
O prazer em A Viagem do Elefante está nos encontros interrogadores das suas personagens. Subhro, um estrangeiro em Portugal, e ainda mais um estrangeiro entre os austríacos, divide-se entre a deferência — ele é um pequeno cornaca, no fim de contas — e a descoberta e a defesa da sua própria realidade. A sua e a do seu elefante. Quando o arrogante Maximiliano exige que reduza o costumeiro período de descanso de Salomão, dizendo que já não estava na Índia, ele recusa. “Se vossa alteza conhecesse os elefantes como eu tenho a pretensão de conhecer, saberia que para um elefante indiano, dos africanos não falo, não são da minha competência, qualquer lugar em que se encontre é índia.”
No seu adeus a Valladolid, falando com o comandante do destacamento português — após uma desconfiança inicial tinham-se tornado grandes amigos — compara-se à sua carga. “[...] em um elefante há dois elefantes, um que aprende o que se lhe ensina e outro que persistirá em ignorar tudo.” E continua: “Descobri que sou tal qual o elefante, uma parte de mim aprende, a outra ignora o que a outra parte aprendeu, e tanto mais vai ignorando quanto mais tempo vai vivendo.”
Ao serviço de reis e imperadores, Salomão e o seu Subhro, mesmo quando obedecem, afirmam os seus eu individuais — as suas almas, alguém pode dizer, se tal não ofender o devoto ateísmo do escritor. A mais divertida e cristalina cena de A Viagem do Elefante tem Subhro a ensinar Salomão a ajoelhar-se diante do santuário de Santo António em Pádua. E fá-lo sob a ameaça das autoridades religiosas locais, que acham conveniente encenar um “milagre.” Subhro estaria preocupado com a possível falha na atuação de Salomão. Não se preocupe, diz-lhe um padre: Os milagres que não acontecem são os “mais saborosos”. “[...] além disso, aliviamos de maiores responsabilidades os nossos santos.”
Uma linha de desafio percorre todas as obras de Saramago. Ele foi um Comunista e continuou como tal; mas nos seus romances não existe qualquer pista das algemas que o comunismo no poder tentou impor aos seus artistas. Em vez disso, há uma veia que rejeita todas as imposições, mesmo as da causa sobre o efeito. Assim, sentimos, lendo-o, que a lei da gravidade está a ser subvertida pelo puxão de outros corpos astrais, os que Saramago inventou e enviou para a nossa órbita.
Algumas passagens do livro que ilustram não só a escrita particular de Saramago, assim como o seu apurado sentido de humor.

1.   Cena da apresentação do tratador ao rei e as impressões deste último:
O secretário depressa se apercebeu de que o tratador não tinha reconhecido o rei, e, como a situação não estava para apresentações formais, alteza, permiti que vos apresente o cuidador de salomão, senhor indiano, apresento-lhe o rei de Portugal, dom João, o terceiro, que passará à história com o cognome de piedoso, deu ordem aos pajens para que entrassem no redondel e informassem o desassossegado cornaca dos títulos e qualidades da personagem de barbas que lhe estava dirigindo um olhar severo, anunciador dos piores efeitos, É o rei. (...) o rei observava o espetáculo com irritação e repugnância, repeso de ter cedido ao impulso matutino de vir fazer uma visita sentimental a um bruto paquiderme, a este ridículo proboscídeo de mais de quatro côvados de altura que, assim o queira deus, em breve irá descarregar as suas malcheirosas excreções na pretensiosa Viena de Áustria.

2.   Descrição do elefante pelo secretário do rei, quando este lhe perguntou que idéia lhe dava o animal:
(...) o que estou a ver daqui, para tomar este caso particular de uma lei geral, é um magnífico exemplar de elefante asiático, com todos os pêlos e pintas a que está obrigado pela sua natureza e que encantará o arquiduque e deslumbrará não só a corte e população de Viena como, por onde quer que passe, o gentio comum.

3.   Como vêem os camponeses o elefante, do qual jamais haviam visto um exemplar:
De estranhar é que, pertencendo (...) à família dos que dão coices, não leve ferraduras. Afinal, disse um dos camponeses, um elefante não tem muito que ver, dá-se-lhe uma volta e já está.

4.   E, mais adiante, falando com o cura da aldeia:
 (...) Senhor padre, deus é um elefante. O padre suspirou de alívio, era preferível isto a ter caído o telhado, além do mais, a herética afirmação era de fácil resposta, Deus está em todas as criaturas, disse. (...) O cura respirou fundo, sujeitou o ânimo que o estava impelindo a maiores extremos e perguntou, Vocês estão bêbados, Não, senhor padre, respondeu o coro, é difícil estar bêbado nos tempos que correm, o vinho está caro (...).
E termino com este excerto, para mim um dos momentos mais hilariantes do livro:
5.   Já na posse do arquiduque, este decidiu o lugar que o elefante haveria de tomar no cortejo rumo a Viena
Era simples, exatamente à frente do coche que o transportaria a ele e à arquiduquesa. Um privado de confiança rogou-lhe que atendesse ao fato conhecido de que os elefantes, tal como, por exemplo, os cavalos, defecam e urinam em movimento, O espetáculo iria ofender inevitavelmente a sensibilidade de suas altezas, antecipou o privado fazendo cara da mais profunda inquietação cívica, ao que o arquiduque respondeu que não se preocupasse com o assunto, sempre haveria gente na caravana para limpar o caminho de cada vez que se produzissem tais deposições naturais.

Primeira Manhã - Dalcídio Jurandir

Dalcídio Jurandir
Dalcídio Jurandir nasceu na Vila de Ponta de Pedras, Ilha do Marajó (PA), em 10 de janeiro de 1909, filho de Alfredo Pereira e Margarida Ramos. Em 1910 mudou-se para Vila de Cachoeira, na mesma ilha. Ali passou sua infância, aprendendo com sua mãe as primeiras palavras.
Em 1916, passou a freqüentar a Escola Mista Estadual. Fez o curso primário do Professor Francisco Leão, em 1921. No ano seguinte, partiu para Belém, onde se matriculou no 3º ano elementar do Grupo Escolar Barão do Rio Branco.
Obtém o certificado de estudos primários, em 1924. Matricula-se, no ano seguinte, no Ginásio Paes de Carvalho. Antes de completar o segundo ano, em 1927, cancelou sua matrícula e viajou para o Rio de Janeiro (RJ), a bordo do navio do Loide, Duque de Caxias, em 1928.
No Rio, enfrentou dificuldades ao chegar. Foi lavador de pratos no Café e Restaurante São Silvestre, no bairro da Saúde. Conseguiu, após um breve tempo, o lugar de revisor na revista "Fon-Fon", onde colaborou sem remuneração. Voltou a Belém no mesmo navio, tendo aproveitado a viagem para ler livros de clássicos portugueses e de poetas nacionais, que lhe foram emprestados por seu amigo, Dr. Raynero Maroja.
Em 1929, Dr. Raynero, como Intendente Municipal de Gurupá, no Baixo Amazonas, nomeou-o Secretário Tesoureiro da Intendência Municipal. Segue para Gurupá em outubro. Lá escreveu a primeira versão de "Chove nos campos de Cachoeira".
Em novembro de 1930, deixou o cargo para trabalhar na região das Ilhas, município de Gurupá, às margens do rio Baquiá, de propriedade de Pais Barreto, que se tornara seu amigo e ensinara as primeiras letras a seus dois filhos.
Em 1931, conclui um livro de contos e um romance, nos quais narra lembranças da infância em Marajó. Fez versos e descreveu paisagens. Retornou a Belém, sendo nomeado auxiliar de gabinete da Interventoria do Estado. Colaborou com vários jornais e revistas, como “O Imparcial”, “Crítica” e “Estado do Pará” e, no ano seguinte, na “Guajaramirim” e “A Semana”. Comunista assumido participou ativamente do movimento da Aliança Nacional Libertadora. Foi preso em 1935, tendo ficado dois meses no cárcere.
Em 1937, foi preso novamente e ficou três meses detido. Somente em 1938 retornou a Marajó, reassumindo suas funções na Diretoria de Educação e Ensino, tendo sido designado a exercer a comissão de Inspetor Escolar em Salvaterra. Reescreve o livro “Chove nos campos de Cachoeira” e, também, concluiu seu segundo romance, “Marinatambalo”, publicado sob o título de Marajó. Colabora nas revistas “Terra Imatura” e “Pará Ilustrado”.
Em 1940, foi agraciado com o Prêmio Dom Casmurro de Literatura, concedido pelo jornal de mesmo nome e pela Editora Vecchi, com o romance "Chove nos Campos de Cachoeira". Faziam parte do júri, entre outros, Oswald de Andrade, Jorge Amado, Rachel de Queiroz e Álvaro Moreira.
Voltou ao Rio de Janeiro, em 1941, onde seu livro premiado foi lançado. Retorna a Belém e passou a trabalhar na Delegacia de Recenseamento. No final do ano viajou para o Rio de Janeiro, onde passou a exercer, em 1942, intensa atividade jornalística em “O Radical” e “Diretrizes”, sendo que neste último atuava como redator, repórter e colunista.
Em 1944, fechado o semanário “Diretrizes”, passou a redigir textos publicitários e legendas para filmes de educação sanitária no Serviço Especial de Saúde Pública – SESP. Colabora com o “Diário de Notícias”, no “Correio da Manhã” e na revista “Leitura”.
Em 1945 e 1946, fez parte da redação do jornal “Tribuna Popular” e colaborou nos jornais “O Jornal”, “A classe operária” e na revista “O Cruzeiro”.
No ano seguinte, seu livro “Marajó” foi editado pela Livraria José Olympio Editora.
Pela "Imprensa Popular", em 1950, foi ao Rio Grande do Sul fazer uma pesquisa acerca do movimento operário do porto do Rio Grande. Desse trabalho surgiu seu livro “Linha do Parque”, escrito entre 1951 e 1955.
Viajou a União Soviética, em 1952.
Foi ao Chile, em 1953, onde participou do Congresso Continental de Cultura.
Em 1956, no seminário “Para Todos”, trabalhou ao lado de Jorge Amado, como redator.
Lança pela Livraria Martins Editora, seu terceiro romance: “Três casas e um rio”, em 1958.
Publica, em 1959, o romance “Linha do Parque”, pela Editora Vitória.
No ano seguinte, publica “Belém do Grão Pará”, pela Livraria Martins Editora. Recebeu o Prêmio Paula Brito, da Biblioteca do Estado da Guanabara, e o Prêmio Luiz Cláudio de Souza, criado pelo Pen Club do Brasil.
A edição russa do romance “Linha do Parque” é lançada em Moscou no ano de 1962, com apresentação de Jorge Amado.
Publica, em 1963, “Passagem dos inocentes”, pela Livraria Martins Editora.
Termina de escrever “Os habitantes”, em 1967.
Em 1968, lança pela Livraria Martins Editora, “Primeira manhã”, e conclui “Chão de Lobos”, penúltimo romance da série “Extremo-Norte”.
O último romance da série acima citada, “Ribanceira”, é concluído em 1970.
Pela Livraria Martins Editora publica, em 1971, o romance “Ponte do Galo”. Aposentou-se, como escritor.
Em 1972, a Academia Brasileira de Letras concede ao autor o Prêmio Machado de Assis de Literatura, pelo conjunto de sua obra, que lhe foi entregue por Jorge Amado.
Recebe, em 1974, do Governo do Estado do Pará, o título honorífico de “Honra ao Mérito”.
A segunda edição de seu romance “Chove nos campos de Cachoeira” é lançada em 1976 pela Livraria Editora Cátedra. “Os habitantes” é publicado pela Editora Artenova. Lançou, também, pela Record, o livro “Chão dos lobos”. Fez diversas viagens a nações da América do Sul e a países socialistas e europeus.
“Ribanceira” foi publicado, pela Record, em 1978, e, no ano seguinte, a segunda edição de “Marajó”, pela Cátedra.
No dia 16 de junho de 1979, o escritor falece na cidade do Rio de Janeiro (RJ), sendo sepultado no Cemitério de São João Batista.
A prefeitura de Belém homenageia o autor, dando seu nome a uma praça pública naquela cidade.
O prefeito da cidade do Rio de Janeiro, Dr. Israel Klabin, dá seu nome a uma rua no Condomínio Riviera dei Fiori, na Barra da Tijuca.
Em Ponta de Pedras, sua cidade natal, há uma escola com seu nome.
Em 2001 concorre com demais personalidades ao título de "Paraense do Século". No mesmo ano, em novembro, é realizado o Colóquio Dalcídio Jurandir, homenagem aos 60 anos da primeira publicação de Chove nos Campos de Cachoeira.
Em 2003, foi criado o Instituto Dalcídio Jurandir, na Casa de Rui Barbosa, na cidade do Rio de Janeiro. O Instituto foi idealizado pelo Professor Ruy Pinto Pereira, que é seu presidente. Na ocasião, todo o acervo do autor foi doado por seus filhos — Margarida e José Roberto — para o Arquivo–Museu de Literatura Brasileira daquela Casa.
Em 2004, Dalcídio foi o patrono da VIII Feira Pan-Amazônica do Livro, ocorrida entre 17 e 26 de setembro daquele ano.

Primeira Manhã
Já em Primeira manhã, uma longa descida será acompanhada por Alfredo quase por acaso, ao encontrar, em um passeio noturno, duas vizinhas que se dirigiam à caça dos maridos, tentando confirmar traições que eles teriam cometido. Nesse longo episódio, o que acontece no decorrer é mais importante do que propriamente o desfecho, longamente mantido em suspense, retardado por um rememorar entre divertido e amargo da vida das duas mulheres, especialmente D. Abigail, a mais falante delas. Dessa forma, a trajetória em busca dos maridos traidores também se converte em desabafo com o quase desconhecido que as acompanha nesse percurso de descida: “À proporção que elas acusavam, iam se tornando vencidas, sem razão, nem esperança, enlaçadas na sedução da viagem e do que a noite consentia.” 34 Durante o trajeto, o narrador menciona, a certa altura, a natureza descendente dessa empresa, associada à noite, aos ruídos desconhecidos e agourentos, ou seja, ao rumo infernal do percurso empreendido por esses três solitários: “Na busca do marido, D. Abigail ia também desesperadamente curiosa dos infernos onde ele fumegava, e das rivais, não ciumenta, mas invejosa.” 35 Aí aparece, com toda a ambivalência, o significado da associação dos prostíbulos a “inferninhos” e se demonstra que a ida até lá, se é penosa e sofrida para mulheres que se sentem traídas, também contém certa dose de curiosidade e mistério pelo que o lugar possa apresentar em sua configuração ou por suas habitantes, especialmente se são ambientes interditos para mulheres casadas. Na ocasião, não é de se estranhar, como faz a amiga Ivânia, que D. Abigail fale demais sobre suas vidas, pois, nessa descida, também ocorre uma espécie de descenso social, pelo menos um momentâneo romper de fronteiras, ao abrigo da noite; e as duas mulheres deixam de ser aquelas que são “casadas da cabeça aos pés”, como afirmara o narrador anteriormente, e se transformam em pessoas comuns, desabafando sobre o que se passa na intimidade de suas casas. No entanto, a cena termina abruptamente para Alfredo sem que o leitor saiba o desfecho da busca, pois as duas o deixam para trás sem explicação, deixando entrever que caberia apenas a elas cumprirem aquela descida até o fim, mais sombria ainda pela associação com o mundo noturno, povoado de sombras e ruídos sinistros. Nesse mesmo romance, ainda há a longa descida da sempre ausente e tão presente Luciana, que tem de cumprir uma longa e dolorosa via crucis pela suspeita de ter dado “um mau passo”, significativamente libertada da prisão que os pais lhe impuseram por um raio: da associação com a intervenção divina para redimi-la da injustiça que se estava cometendo é um passo. Se, por um lado, ela só aparece no romance por meio do discurso dos outros personagens, sua presença está sempre se renovando graças à obsessão que Alfredo desenvolve por ela, o que o faz buscá-la em vários lugares da cidade, perguntando a todos que possam dar alguma informação sobre a moça amaldiçoada pelos pais. De certa maneira, Alfredo também a acompanha em sua maldição e descida, pela obsessão e pela busca que realiza incomodado por ter à sua disposição a casa da qual Luciana fora expulsa, num paralelo entre a trajetória dessa personagem e a sua própria, humilhado que fora pelos colegas do Ginásio: 36 Agora, esta casa à disposição do estudante que fugiu do estudo, à disposição do ginasiano pelo Ginásio escorraçado. Nesta casa, feita para a predileta vir morar. A anônima corre as ruas da Babilônia, moendo a sua farinha, passa os rios, não mais a tenra nem a delicada.
A desabençoada nunca há de pôr o pé neste soalho, nunca há de ver o mundo
debruçada desta janela.
“Desabençoada” pelos pais, Luciana perdera o lugar que agora é ocupado por Alfredo e este junta mais esta obsessão às suas tantas outras buscas.

Resumo e Elementos da Narrativa elaborados pelo professor Lanirson Cabral da Silva

“Primeira manhã”:
Resumo:
O Romance “Primeira Manhã", de Dalcídio Jurandir enfatiza a chegada de Alfredo, protagonista dos romances do Ciclo de Extremo Norte, no Liceu, p primeiro dia de aula, os desencantos com a escola e, com isto, reflete sobre educação formal. A literatura além de fruição, sua função primeira, se ocupa em retratar as mazelas humanas.
        Em Primeira Manhã, uma longa descida será acompanhada por Alfredo quase por acaso, ao encontrar, em um passeio noturno, duas vizinhas que se dirigiam à caça dos maridos, tentando confirmar traições que eles teriam cometido.
  Nesse longo episódio, o que acontece no decorrer é mais importante do que propriamente o desfecho, longamente mantido em suspense, retardado por um rememorar entre divertido e amargo da vida das duas mulheres, especialmente, especialmente D. Abigail, a mais falante delas. Dessa forma, a trajetória em busca dos maridos traidores também se converte em desabafo com o quase desconhecido que as acompanha nesse percurso de descida: “À proporção que elas acusavam, iam se tornando vencidas, sem razão, nem esperança, enlaçadas na sedução da viagem e do que a noite consentia". Durante o trajeto, o narrador menciona, a certa altura, a natureza descendente dessa empresa, associada à noite, aos ruídos desconhecidos e agourentos, ou seja, ao rumo infernal do percurso empreendido por esses três solitários: "Na busca do marido, D. Abigail ia também desesperadamente curiosa dos infernos onde ele fumegava, e das rivais, não ciumenta, mas invejosa. "Aí aparece, com toda ambivalência, o significado da associação dos prostíbulos e "inferninhos" e se demonstra que a ida até lá, se é penosa e sofrida para mulheres que se sentem traídas, também contém certa dose de curiosidade e mistério pelo que o lugar possa apresentar em sua configuração ou por suas habitantes, especialmente se são ambientes interditos para mulheres casadas.
   Na ocasião, não é de se estranhar, como faz a amiga Ivânia, que D. Abigail fale demais sobre suas vidas, pois, nessa descida, também ocorre uma espécie de descenso social, pelo menos um momentâneo romper de fronteiras, ao abrigo da noite; e as duas mulheres deixam de ser aquelas que são "casadas da cabeça aos pés", como afirmara o narrador anteriormente, e se transformam em pessoas comuns, desabafando sobre o que se passa na intimidade de suas casas.
    No entanto, a cena termina abruptamente para Alfredo sem que o leitor saiba o desfecho da busca, pois as duas o deixam para trás sem explicação, deixando entrever que caberia apenas a elas cumprirem aquela descida até o fim, mais sombria ainda pela associação com o mundo noturno, povoado de sombras e ruídos sinistros.
    Nesse mesmo romance, ainda há a longa descida da sempre ausente e tão presente Luciana, que tem de cumprir uma longa e dolorosa via crucis pela suspeita de ter dado “um mau passo”, significativamente libertada da prisão que os pais lhe impuseram por um raio: da associação com a intervenção divina para redimi-la da injustiça que se estava cometendo é um passo. Se,por um lado,ela só aparece no romance por meio do discurso dos outros personagens, sua presença está sempre se renovando graças à obsessão que Alfredo desenvolve por ela, o que o faz buscá-la em vários lugares da cidade, perguntando a todos que possam dar alguma informação sobre a moça amaldiçoada pelos pais.De certa maneira, Alfredo também a acompanha em sua maldição e descida, pela obsessão e pela busca que realiza, incomodado por ter à sua disposição a casa da qual Luciana fora expulsa, num paralelo entre a trajetória dessa personagem e a sua própria, humilhado que fora pelos colegas do Ginásio: Agora,esta  casa à disposição do estudante que fugiu do estudo, à disposição do ginasiano pelo Ginásio escorraçado. Nesta casa, feita para a predileta vir morar. A anônima corre as ruas da Babilônia,moendo a sua farinha, passa os rios, não mais a tenra nem a delicada.
    [...]A desabençoada nunca há de pôr o pé neste soalho, nunca há de ver o mundo debruçada desta janela. "Desabençoada" pelos pais, Luciana perdera o lugar que agora é ocupado por Alfredo e este junta mais esta obsessão às suas tantas outras buscas.


   ELEMENTOS NARRATIVOS DO ROMANCE PRIMEIRA MANHÃ
  Personagens: Principal: Alfredo/ Secundários: Luciana, D. Abigail, Ivânia
  Tempo: Cronológico ( pós-ciclo da borracha e da Belle Epóque)
  Enredo Linear
  Narrador: Onisciente e onipresente/ Espaço: Físico: Belém-Pará / Social: Valores interioranos, familiares educacionais, morais, sociais, memorialistas e sociais
  Tipificação: Oitavo Romance do Ciclo Extremo Norte
  Temática:- Os dissabores diante da educação e da decadência de uma cidade ( Belém); As expectativas frustradas de um estudante em primeiro dia de aula; As experiências de um jovem num liceu
   


 Lanirson Cabral da Silva é professor, desde 1981, formado em Licenciatura em letras pela Universidade do Pará, Pós - graduado em Ensino da Literatura Luso-Brasileira pela Universidade do estado do Pará (UEPA), com diversos estudos sobre literatura publicados em revistas e editoriais. Ministrou aulas em várias escolas do Estado e Particulares, hoje, dedica seus conhecimentos ao Grupo Educacional Ideal, onde é professor desde 1994. Poeta, escritor e compositor, com várias canções conhecidas, participações em festivais de música pelo Estado do Pará e fora dele, seminários, encontros e palestras sobre a arte literária. 

“Carro dos Milagres” de Benedicto Monteiro

“Carro dos Milagres” de Benedicto Monteiro
Nasceu em Alenquer em 1 de março de 1924 — faleceu em Belém, 15 de junho de 2008 foi um escritor, jornalista, advogado e político brasileiro.
Filho de Ludgero Burlamaqui Monteiro e Heribertina Batista Monteiro, cursou o primário no grupo escolar de Alenquer e o curso de humanidades no Colégio Marista Nossa Senhora de Nazaré, em Belém.
Cursou o científico no Colégio Rabelo, iniciando também os seus estudos de Direito na Universidade do Brasil. Diplomou-se bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito do Pará. Exerceu a magistratura e o Ministério Público. Foi eleito deputado estadual por duas legislaturas. Foi também secretário de Estado de Obras, Terras e Águas. Foi cassado durante o Golpe Militar de 1964.
Publicou em 1945, no Rio de Janeiro, o seu primeiro livro de poesias, Bandeira Branca. As obras de Benedicto Monteiro são dedicadas ao fabuloso “Verde Vagomundo” da Amazônia.
Na sua terra natal, exerceu a vereança e funções judiciárias. Deputado estadual e federal (Assembléia Nacional Constituinte), foi também procurador-geral do Estado e secretário de obras. E em seus últimos anos, foi advogado militante.
Casado, teve cinco filhos. Foi membro da Academia Paraense de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico do Pará e da Academia Paraense de Direito.

O Livro “Carro dos Milagres”
O Livro O Carro dos Milagres, de Benedicto Wilfred Monteiro (1924-2008) é uma coletânea de narrativas publicada em 1975, durante os Anos de chumbo (Ditadura Militar), de censura à cultura escrita. Premiada pela Academia Paraense de Letras, a presente coletânea contêm relatos de um caboclo que vem da brenha das matas amazônicas contar suas histórias, memórias, culturas e saberes. Das sete narrativas, é importante enfocar aquela que contém o mesmo título do livro: O Carro dos Milagres.
            Ainda que inserida num livro de contos, a primeira narrativa – O Carro dos Milagres – enquadra-se na categoria de novela, porque o enredo dela não trata de um único assunto, mas sim de vários e com muitos personagens; além disso, cabe-lhe o patamar de novel pelo fato de ter menor extensão do que o romance. Todavia, não é interesse trabalhar o aspecto do subgênero narrativo, mas sim tratar do conteúdo e da estrutura narrativa da referida obra.
            A novela O Carro dos Milagres apresenta a experiência do caboclo Miguel dos Santos Prazeres (embora esse nome não apareça nesse texto, pode-se dizer que ele é subentendido de acordo com o conjunto da coletânea) no Círio de Nazaré em Belém/PA. Primeiramente, nota-se o diálogo entre dois caboclos (Personagem-narrador e o Compadre) que vieram acompanhar o Círio, sendo que Miguel tem o interesse de pagar uma promessa que a sua mãe fez a Nossa Senhora de Nazaré do Retiro (ou do Desterro) quando o rapaz encontrava-se em situação de perigo com sua canoa nas águas do Marajó. A mãe velha prometera a Santa que se seu filho fosse resguardo do temporal ele haveria de levar um barco a vela de miriti durante a procissão.
            O personagem-narrador (Miguel) descreve, de forma maravilhosa, os detalhes da procissão que está assistindo pela primeira vez, volta-se ao passado de suas lembranças para contar suas sagas de canoeiro no Igarapé da Mata do Catauari com o Compadre, um amigo que o acompanha no Círio e numa beberagem com cachaça de Abaeté, enquanto aguardam no nascer do dia a saída do Círio no Largo da Sé (atual Praça Dom Frei Caetano Brandão).
            Depois de muitos goles de bebida, os dois caboclos resolvem segui a procissão, sendo que Miguel tinha o objetivo de achar o Carro dos Milagres e depositar a sua promessa (o barco a vela). Miguel avista o Carro, descreve a lenda portuguesa contida na iconografia do Carro (o milagre de Nossa Senhora de Nazaré a Dom Fuas Roupinho no século XII). Mas o caboclo encontra inúmeras dificuldades para pagar sua promessa: primeiro perde o companheiro de cachaça, o compadre; depois esbarra com o barquinho num balão de gás que dispersa a promessa no meio dos romeiros.
            Miguel, bêbedo e perdido na multidão, acaba chegando a Basílica-Santuário de Nazaré. Ali o caboclo fica maravilhado com as impressões artísticas da Igreja e nela se deixa estar até as altas da madrugada. Ao chegar na garagem, Miguel, com uma vela na mão, encontrar o Carro dos Milagres e se detém olhando as promessas contidas na barca. E é exatamente aí a história se complica: O rapaz é surpreendido por beatas que, maliciosamente, o acusam de incendiário e de ladrão. Já raia um novo dia e elas chamam o padre e a polícia para deter o suposto meliante.
            O caboclo é levado preso para a delegacia e ali descreve a presença dos detentos de vários lugares do país e do exterior e as minúcias horríveis daquele cárcere. Depois, avista outro Compadre, viciado em soltar balões de gás, que faz procuração por seu filho perdido e possivelmente morto na procissão. Miguel observa e relata o equivoco sobre a morte do filho desse Companheiro, achavam que o filho era um rapaz que morreu na explosão de um compressor de balão que estourou na procissão. Mas, logo é resolvida essa história quando encontra o filho do Companheiro que ficou bebendo quando seu pai lhe ordenara comprar tais balões coloridos, os mesmos que foram descuidados e soltos pelo filho, os mesmo que levaram a promessa do Miguel, o qual desfecha a história prestando depoimento à polícia. 
                        
Estrutura da Narrativa
Personagens:        
· Principais:
Narrador (com o nome subentendido “Miguel dos Santos Prazeres”) – é redondo/complexo/antagônico;
Compadre “de cachaça” – redondo/complexo;
Compadre “que perdeu o filho” – linear/plano.
· Secundários:
Mãe velha (genitora do narrador) – linear/ plana;
Beatas – redondas/complexas;
Comissário (policial) – linear/plano;
Comadre (que perdeu o filho) – linear/plana;
Filho (dos Compadres) – redondo/complexo
  
Tempo
· Tempo cronológico – dois dias seguidos, desde a madrugada do Círio até à tarde do dia seguinte: “três horas da tarde”;
· Tempo histórico – o milagre de Nossa Senhora de Nazaré a Dom Fuas Roupinho no século XII;
· Tempo psicológico – feed back: lembrança do naufrágio do barco, das sagas pelos igarapés como o compadre “de cachaça”.

Espaço
· Espaço físico: Largo da Sé (atual praça Dom Frei Caetano Brandão), catedral da Sé bairro da Cidade Velha, ruas do cortejo do círio, Largo de Nazaré (atual Praça Santuário), Basílica-Santuário de Nazaré, sacristia e garagem da Basílica, cadeia.
· Espaço psicológico: Baía do Marajó, Igarapé das Matas do Catauari.

Ambientação
   Contexto social, histórico, religioso, familiar.

Enredo
    Linear e a-linear (intercalado com memórias, feed backs)

Foco-narrativo
    Narrador em primeira pessoa

Discurso
   Direto e indireto livre

Clímax         
Reencontro do filho (dos compadres) embriagado, o qual diziam que estava morto e o mesmo que soltou os balões coloridos que se engataram na promessa do Miguel.
É incrível como este livro constitui-se em pura oralidade impressa!
A narrativa flui a partir de um diálogo entre compadres, em que o narrador é um romeiro que veio ao Círio pagar uma promessa feita à Virgem em favor de seu barco que sofrera um naufrágio.
Para quem ainda não sabe, o carro dos milagres é um dos carros alegóricos que compõem a grande procissão do 2º domingo de outubro em Belém, onde os romeiros e promesseiros depositam seus ex-votos à Virgem de Nazaré: réplicas de casas, de partes do corpo humano em cera ou – como o personagem de Benedicto Monteiro – de embarcações salvas de um naufrágio.
Este carro foi introduzido na procissão em 1805, por determinação de D. Maria I, rainha de Portugal, para lembrar o primeiro milagre de N. Sra. de Nazaré, que salvou Dom Fuas Roupinho de se precipitar num abismo.
A inspiração de Benedicto Monteiro vem desse mote lendário de raízes lusitanas. Assim ele cria, em cenário ímpar de manifestação sócio-religiosa popular, um narrar onde as possibilidades de coexistência entre o lírico, o épico e o dramático induzem o leitor a uma leitura tão contemplativa quanto a dos clássicos da literatura aqui mencionados.

Libertinagem - Manuel Bandeira

Manuel Bandeira
Filho do engenheiro Manuel Carneiro de Sousa Bandeira e de sua esposa Francelina Ribeiro, era neto paterno de Antônio Herculano de Sousa Bandeira, advogado, professor da Faculdade de Direito do Recife e deputado geral na 12ª legislatura. Tendo dois tios reconhecidamente importantes, sendo um, João Carneiro de Sousa Bandeira, que foi advogado, professor de Direito e membro da Academia Brasileira de Letras e o outro, Antônio Herculano de Sousa Bandeira Filho, que era o irmão mais velho do engenheiro Sousa Bandeira e foi advogado, procurador da coroa, autor de expressiva obra jurídica e foi também Presidente das Províncias da Paraíba e de Mato Grosso.
Seu avô materno era Antônio José da Costa Ribeiro, advogado e político, deputado geral na 17ª legislatura. Costa Ribeiro era o avô citado em Evocação do Recife. Sua casa na rua da União é referida no poema como "a casa de meu avô". No Rio de Janeiro, para onde viajou com a família, em função da profissão do pai, engenheiro civil do Ministério da Viação, estudou no Colégio Pedro II (Ginásio Nacional, como o chamaram os primeiros republicanos) foi aluno de Silva Ramos, de José Veríssimo e de João Ribeiro, e teve como condiscípulos Álvaro Ferdinando Sousa da Silveira, Antenor Nascentes, Castro Menezes, Lopes da Costa, Artur Moses.
Em 1904 terminou o curso de Humanidades e foi para São Paulo, onde iniciou o curso de arquitetura na Escola Politécnica de São Paulo, que interrompeu por causa da tuberculose. Para se tratar buscou repouso em Campos do Jordão, Campanha e outras localidades de clima mais ameno. Com a ajuda do pai que reuniu todas as economias da família foi para a Suíça, onde esteve no Sanatório de Clavadel. ao regressar, iniciou na literatura, com "A Cinza das Horas", em 1917, e dois anos depois, com a publicação de "Carnaval".
Em 1935, foi nomeado inspetor federal do ensino e, em 1936, foi publicada a “Homenagem a Manuel Bandeira”, coletânea de estudos sobre sua obra, assinada por alguns dos maiores críticos da época, alcançando assim a consagração pública. De 1938 a 1943, foi professor de literatura no Colégio D. Pedro II, e em 1940, foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras. Posteriormente, nomeado professor de Literaturas Hispano-Americanas na Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil, cargo do qual se aposentou, em 1956.
Manuel Bandeira faleceu no dia 13 de outubro de 1968, com hemorragia gástrica, aos 82 anos de idade, no Rio de Janeiro, e foi sepultado no mausoléu da Academia Brasileira de Letras, no Cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro.

Libertinagem
Libertinagem é o quarto livro de poesia do escritor brasileiro Manuel Bandeira, publicado em 1930, mas é o seu primeiro livro verdadeiramente moderno e importante.  É composto por 38 poemas, entre os quais se destacam "Pneumotórax", "Pensão Familiar", "Profundamente" e "Vou-me embora pra Pasárgada”.
Os poemas de Libertinagem contêm humor, erotismo e refinamento musical.
É uma sucessão de poemas espantosos, cheios de novidade, humor, erotismo, refinamento musical, força de imagens – tudo isso produzindo uma intensidade emocional que, às vezes, aproxima-se do piegas, mas nunca cai nele.

Análise do livro "Libertinagem"

Estilo
A poesia de Manuel Bandeira caracterizou-se pela variedade criadora, desde o soneto parnasiano, pela prática do verso livre, até por experiências com a poesia concretista. Por outro lado, conservou e adaptou ao espírito moderno os ritmos e formas mais regulares, como os versos em redondilhas maiores. Em sua poesia, observa-se uma constante nota de ternura e paixão pela vida. Seu lirismo intimista registra o cotidiano com simplicidade, atribuindo-lhe um sentido de evento e espetáculo. Nela, também, estão presentes a infância, a terra natal, a cultura popular, a doença, a preocupação com a morte, a defesa da linguagem modernista, a sensualidade, o lirismo tradicional, o antilirismo, a reflexão existencial, a infância e o humor.
Verificamos, em Manuel Bandeira, traços indicadores de uma sensibilidade romântica, sobretudo de uma profunda tristeza, aliada ao desencanto e à melancolia. A confissão de seu estado de espírito, da presença do “eu” em poemas e da morte como motivo poético mais freqüente conferiu-lhe uma aura romântica.

Temáticas e estilos
A morte estava muito presente na vida de Bandeira, pois muito jovem descobriu a tuberculose. Como não pôde seguir a vida como arquiteto, Bandeira começou a se dedicar à poesia para preencher o espaço. Esta temática está presente desde o primeiro livro. A morte também determinou um estilo, mas sem o entusiasmo dos modernistas da época. Os paulistas eram extremamente exaltados, como Oswald e Mário de Andrade. Bandeira era um poeta da humildade, do tom mais baixo.
Outra temática dos poemas de Bandeira é a sensualidade, tratada de maneira diferente, não tradicional. O objeto do desejo era principalmente as prostitutas. Em função da própria experiência de vida sexual dele, não convencional por causa da doença.
Também a infância, como retorno ao passado, opõe-se a este presente de angústia e dor vivenciado pelo poeta. O folclore, suas quadras e canções populares, a família sempre apareceram ligados à infância. Foi o tempo feliz antes da doença. Depois o pai, a mãe e o irmão morreram, então foi o tempo de comunhão com os parentes.
(Esse é um dos aspectos fortes da poesia de Bandeira: levar a simplicidade até a beira da sentimentalidade, mantendo-se sempre, com mestria e finura, longe de qualquer vulgaridade.)
Alguns dos poemas mais famosos de Bandeira fazem parte deste livro: “Pneumotórax”, cena de humor negro envolvendo um tuberculoso e um médico infame; “Pensão familiar”, cena do cotidiano de uma “pensãozinha burguesa”, com o inesquecível gatinho que “faz pipi” e “encobre cuidadosamente a mijadinha” – “a única criatura fina da pensãozinha burguesa”; “Profundamente”, um dos grandes poemas da morte deste grande poeta da morte, e, talvez o mais célebre de seus poemas, “Vou-me embora pra Pasárgada”, deliciosa utopia que apresenta a fantasia de um país em que todos os desejos se satisfazem, especialmente os desejos sexuais:
Analise de alguns poemas
Pneumotórax
Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.
A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.
Mandou chamar o médico:
– Diga trinta e três.
– Trinta e três... trinta e três... trinta e três...
– Respire.
..............................................................

– O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direitoAche os cursos e faculdades ideais para você. É fácil e rápido. infiltrado.
– Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
– Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.

- Refere-se à doença de Manuel Bandeira - a tuberculose. A morte, novamente em evidência, é tratada em tom jocoso da primeira geração modernista: humor negro, coloquialismos, auto-ironia, além da técnica de marcação teatral com o emprego do diálogo.
“Vou-me embora prá Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconseqüente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Ver a ser contraparente
Da nora que nunca tive
E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d’água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada
Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar
E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
– Lá sou amigo do rei –
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada

- Nesse poema, Bandeira busca a utopia, a evasão, o lugar onde possa realizar-se, onde fuja da morte (Quando de noite me der / vontade de me matar), onde se mesclem os elementos reais e o non-sense, onde a doença não será empecilho porque simplesmente não existirá, onde a infância será revivida e os homens e mulheres que participaram de sua vida, presentes, representados por Rosa.
O coloquialismo, os versos em redondilha maior e a repetição do verso "Vou-me Embora Pra Pasárgada" remetem-nos à poesia popular.
O termo Pasárgada ocorreu ao poeta num momento de desânimo devido à doença. Ouvira no colégio algo sobre uma civilização ideal, antiga, fundada por Ciro, na Pérsia.

"Porquinho-da-Índia"
Quando eu tinha seis anos
Ganhei um porquinho-da-índia.
Que dor de coração eu tinha
Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!
Levava ele pra sala
Pra os lugares mais bonitos, mais limpinhos,
Ele não se importava:
Queria era estar debaixo do fogão.
Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas...
- O meu porquinho-da-índia foi a minha primeira namorada.

- Poema de tom narrativo e memorialista, destaca a pureza, a inocência de uma criança que dedica todo seu afeto a um bicho de estimação. O toque de humor fica por conta do verso final, espécie de conclusão em que se introduz a fala do eu lírico.

“A Virgem Maria"
O oficial do registro civil, o coletor de impostos, o mordomo
da Santa Casa e o administrador do cemitério de S. João
Batista
Cavaram com enxada
Com pás
Com as unhas
Com os dentes
Cavaram uma cova mais funda que o meu suspiro de renúncia
Depois me botaram lá dentro
E puseram por cima
As Tábuas da Lei

Mas de lá de dentro do fundo da treva do chão da cova
Eu ouvia a vozinha da Virgem Maria
Dizer que fazia sol lá fora
Dizer i n s i s t e n t e m e n t e
Que fazia sol lá fora.

A Virgem Maria foi escrito em 1926, seus versos elaborados de maneira livre, exprimem a proximidade do poeta com a morte. A morbidez pode ser considerada um dos temas basilares da poesia bandeiriana, e sua presença possuí relação intrínseca com a tuberculose que o acometeu em 1904. Durante vários anos, Bandeira, foi desenganado por uma miríade de médicos. Devido a essa enfermidade ele chegou a viajar para outros locais em busca de climas mais propícios para curar a doença.
Virgem Maria, escrito em primeira pessoa, traz em seu primeiro verso, “O oficial do registro civil, o coletor de impostos, o mordomo da Santa Casa e o administrador do cemitério de S. João Batista.” Como é possível notar, o poeta cita vários profissionais, que ao longo do poema, estão ligados ao sepultamento do narrador. Primeiramente, temos a figura do oficial de registro civil, a este o enterro de alguém é, de certo modo, algo inerente à sua profissão, haja vista que, a ele é incumbido o ato de registrar quem nasce e quem morre. Ao administrador do cemitério, o falecimento de alguém possuí relevância inegável, não apenas pelo fato de ter que administrar o local de enterro. Sua importância pode ser evidenciada em um sentido oneroso, uma vez que, existem taxas que são cobradas para sepultar as pessoas. Ao citar o coletor de impostos e o mordomo da Santa Casa, é possível notar que o poeta utilizou-se da ironia, isso se evidencia fortemente nos versos subseqüentes. A explicação do uso desse tropo é facilmente entendida se pensarmos que o coletor de impostos só cobra tributos de alguém ao vivo, mesmo assim ele é uma das figuras que enterram o narrador. Já o Mordomo, nomenclatura antiga que era utilizada para designar os diretores responsáveis pelo serviços de todo o hospital, auxilia os outros no enterro. Ora, se analisarmos bem, era dever deste profissional tentar organizar sua equipe da melhor maneira possível para salvar a vida dos pacientes.
Destarte, como vemos nos versos que vão do dois até o oito, todos os sujeitos mencionados anteriormente empreendem um esforço hercúleo para sepultar o eu-lírico, dado que, recorrem não apenas a enxada e a pá, utilizam-se também dos dentes e das unhas para cavar uma cova, como nos diz o verso seis, “mais funda que o meu suspiro de renúncia.” Logicamente percebemos que Bandeira recorreu à metáfora para elaborar esses versos, uma vez que, os atos empenhados pelos profissionais citados não necessariamente se dão na abertura real da sepultura, ou de um buraco propriamente dito, mas sim na maneira que todos estas pessoas desenganaram o narrador através de outro atos que são inerentes a profissão que cada um desempenha. Analisando por este viés, fica fácil compreendermos que a sepultura não precisa ser interpretada como sendo necessariamente física. Mas esta pode estar no íntimo do narrador, ou seja, o sepulcro na verdade estaria calcado no fato da solidão e angústia que ele sente por estar sendo “enterrado” por estes profissionais.
Nos versos seguintes ele é finalmente sepultado. Para cobrir o sepulcro são utilizadas as Tábuas da Lei. Eis que nos surge a seguinte indagação: teria o indivíduo transgredido algum dos princípios estabelecidos no decálogo? Talvez sim, se pensarmos que em uma das Tábuas que é dedicadas ao amor a Deus, ele no momento de sua doença, poderia ter negado a existência do ser supremo. Já na segunda Tábua dedicada ao amor ao próximo, não fica explicito no poema, se o sepultado violou ou não uma das normas.
Depois de se ser sepultado, como poder-se-á notar no poema, ainda vivo, ele escuta a vozinha da Virgem Maria. A mesma, em forma de imagem, é comumente colocada em cima de sepulturas. A santa viola o silêncio do túmulo e diz com sua vozinha que “fazia sol lá fora.” Em seguida, fala “i n s i s t e n t e m e n te”, repetindo que havia sol lá fora. Analisando os versos, perceber-se-á que o uso do diminutivo empregado no substantivo “voz” denota certa brandura. Já o soletramento da palavra “insistentemente”, ajuda a frisar para o leitor a idéia de que o sol estava presente lá fora. Como vemos, o poeta utilizou de uma metáfora bem construída, pois a frase “fazia sol lá fora”, na verdade indica que ainda existia vida.
Analisando todos os versos de A Virgem Maria, concluímos que, Bandeira, consegue transmitir de maneira surrealista, por meio de metáforas bem elaboradas, como é o sentimento de ser desenganado e enterrado. Enfim, ele transmite qual é a sensação de sentir-se sem esperanças em relação à vida. Os versos finais do poema, apesar de nos trazerem que ainda havia uma chance de vida para o indivíduo, essa já não é eficaz, pois a Virgem Maria diz no pretérito imperfeito do indicativo que “fazia sol lá fora.” As palavras da santa ajudam a reforçar também que mesmo com chances de viver ele se deixou vencer, ou seja, o cidadão realmente não estava interessado em viver pois ficou inerte enquanto todas as pessoas que ele cita o “sepultavam.”
O poema conta com quatorze versos. Além disso, poder-se-á observar que, em A Virgem Maria, não existe nenhum tipo de pontuação a partir do segundo verso até o restante do poema, a ausência desta é totalmente proposital. O poeta utilizou sabiamente o recurso, pois ao lermos o texto, ficamos com falta de ar. Além disso, somos invadidos por um grande desespero. Estas duas emoções, causadas graças à falta de pontuação, conseguem transmitir de maneira magistral os sentimentos de ser enclausurado vivo em uma sepultura.
No tocante às figuras de linguagem, Bandeira recorre à anáfora. Nos versos três, quatro e cinco, ela é usada através da preposição “com”, que enfatiza o ato de sepultar o indivíduo, e não apenas faz isso, pois este recurso também ajuda a criar uma sonoridade que se encaixa perfeitamente ao ritmo do poema .
Dos tropos mais marcantes que se engendram nos versos, podemos citar a metáfora – que como vimos anteriormente é amplamente utilizada – e a ironia que se dá principalmente no primeiro verso.
Mesmo tendo sido construído com base nos pilares da versificação livre, Bandeira não abandona em certas partes do poema a rima, que em A Virgem Maria adicionam uma sonoridade especial ao ritmo. Os versos livres não necessariamente rompem com as rimas, como elucida de maneira brilhante, Antonio Candido, em sua obra Estudo analítico do poema, ele diz que “no modernismo a rima nunca foi abandonada. Mas os poetas adquiriram grande liberdade no seu tratamento.”
Para findar esta análise. é de suma importância ressaltar que Virgem Maria tem como características precípuas, as metáforas acerca da morte, ironia, versos livres e. por fim, a desesperança em relação à vida. Estes são os fatores cruciais que nos levam um entendimento maior da obra. Porém, apenas estes, como foi demonstrado, não seriam suficientes caso não tivéssemos recorrido ao contexto de como e quando o poema foi produzido.
- As figuras que aparecem na primeira estrofe revelam a realidade opressora e a morte se pronunciando. Ansiedade, ira e hipocrisia compõem o quadro do enterro até que, em oposição à escuridão e à morte, surge a imagem da Virgem Maria, da qual o poeta só ouve a voz dizendo-lhe que "fazia sol lá fora". É a vida, a liberdade. O termo insistentemente foi grafado de forma especial no poema para enfatizar o seu significado.

"Evocação do Recife"
Recife
Não a Veneza americana
Não a Mauritsstad dos armadores das Índias Ocidentais
Não o Recife dos Mascates
Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois
- Recife das revoluções libertárias
Mas o Recife sem história nem literatura
Recife sem mais nada
Recife da minha infância
A rua da União onde eu brincava de chicote-queimado
e partia as vidraças da casa de dona Aninha Viegas
Totônio Rodrigues era muito velho e botava o pincenê
na ponta do nariz
Depois do jantar as famílias tomavam a calçada com cadeiras
mexericos namoros risadas
A gente brincava no meio da rua
Os meninos gritavam:
Coelho sai!
Não sai!

À distância as vozes macias das meninas politonavam:
Roseira dá-me uma rosa
Craveiro dá-me um botão

(Dessas rosas muita rosa
Terá morrido em botão...)
De repente
nos longos da noite
um sino
Uma pessoa grande dizia:
Fogo em Santo Antônio!
Outra contrariava: São José!
Totônio Rodrigues achava sempre que era são José.
Os homens punham o chapéu saíam fumando
E eu tinha raiva de ser menino porque não podia ir ver o fogo.

Rua da União...
Como eram lindos os montes das ruas da minha infância
Rua do Sol
(Tenho medo que hoje se chame de dr. Fulano de Tal)
Atrás de casa ficava a Rua da Saudade...
...onde se ia fumar escondido
Do lado de lá era o cais da Rua da Aurora...
...onde se ia pescar escondido
Capiberibe
- Capiberibe
Lá longe o sertãozinho de Caxangá
Banheiros de palha
Um dia eu vi uma moça nuinha no banho
Fiquei parado o coração batendo
Ela se riu
Foi o meu primeiro alumbramento
Cheia! As cheias! Barro boi morto árvores destroços redemoinho sumiu
E nos pregões da ponte do trem de ferro
os caboclos destemidos em jangadas de bananeiras

Novenas
Cavalhadas
E eu me deitei no colo da menina e ela começou
a passar a mão nos meus cabelos
Capiberibe
- Capiberibe
Rua da União onde todas as tardes passava a preta das bananas
Com o xale vistoso de pano da Costa
E o vendedor de roletes de cana
O de amendoim
que se chamava mudubim e não era torrado era cozido
Me lembro de todos os pregões:
Ovos frescos e baratos
Dez ovos por uma pataca
Foi há muito tempo...
A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros
Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Língua certa do povo
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil
Ao passo que nós
O que fazemos
É macaquear
A sintaxe lusíada
A vida com uma porção de coisas que eu não entendia bem
Terras que não sabia onde ficavam
Recife...
Rua da União...
A casa de meu avô...
Nunca pensei que ela acabasse!
Tudo lá parecia impregnado de eternidade
Recife...
Meu avô morto.
Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro
como a casa de meu avô.

- A subjetividade, o memorialismo, a infância, o folclore e a cultura popular caracterizam esse famoso poema de Manuel Bandeira.
O eu lírico revive cenas do passado, como se fosse menino outra vez.
Ao lado das brincadeiras de infância, surgem pessoas com as quais conviveu: parentes, vizinhos, amigos. Até os nomes das ruas eram líricos: Rua da União, do Sol, da Aurora.
O poema alude ao erotismo, à força das águas, aos pregões e à exaltação do falar popular: "(...) língua errada do povo/ Língua certa do povo".
O ataque ao artificialismo lingüístico, no tom da primeira geração modernista, está em: "Ao passo que nós/ O que fazemos/ É macaquear/ A sintaxe lusíada". Leia-se por nós, pessoas cultas - escritores, professores, leitores...
A morte, tema fundamental em Bandeira, surge nas últimas estrofes, reforçando que a cidade de Recife de seu passado fora-se como seu avô, restou-lhe apenas a memória.

"Irene no Céu"
Irene preta
Irene boa
Irene sempre de bom humor.

Imagino Irene entrando no céu:
- Licença, meu branco!
E São Pedro bonachão:
- Entra, Irene. Você não precisa pedir licença

O poema é formado de 7 versos irregulares, possui duas estrofes, é um poema . Primeira estrofe tem 3 versos – com a palavra semelhante “Irene”. Na segunda estrofe possui 4 versos . Podemos encontrar o uso de travessões – que são características de uma narrativa (diálogo)
O narrador fantasia a personagem Irene no céu, esta tem um pequeno diálogo com o terceiro personagem do texto, que é São Pedro:
Imagino Irene entrando no céu:
- Licença meu branco!
E São Pedro bonachão:
- Entra, Irene. Você não precisa pedir licença.
Olhando ainda para a primeira estrofe não encontramos verbos, enquanto na segunda estrofe há presença de verbos. Sem os mesmos o segundo parágrafo perderia sua essência marcante. A linguagem é do tipo coloquial (exemplo: bonachão) .
 O foco narrativo é da primeira pessoa. O assunto ou seqüência dos fatos apresentados estão em sintonia com o tema, porque consiste na idéia de elucidar uma circunstância real e costumeira da época. Isso também é visto pela presença dos ideais religioso da igreja católica, isto é, a idéia do céu e de São Pedro como seu porteiro ou guardador.    
Há no texto interiorização de figuras familiares, conhecidas, dessa maneira é bem provável que a personagem “Irene” era alguém próximo da história de vida do autor. Percebi-se tal “intimidade” na medida em que o narrador e personagem apresenta os fatos:
Irene preta
Irene boa
Irene sempre de bom humor (...)
 “Irene no céu”, é uma crônica já que se caracteriza pelo tom humorístico ou crítico, que aborda um tema do passado (discriminação racial) bastante culminante na época. Só para se ter uma idéia, a discriminação de raças nesta época era tão grande que era possível presenciar frases do tipo: "Alugam-se quartos. Não se admitem pessoas de cor".
O tratamento de inferioridade dispensado a uma pessoa ou grupo de pessoas por motivos raciais, religioso, político, entre outros na época era constante. O pobre, o negro, o necessitado, parecia que não tinha lugar privilegiado nas classes sociais , imagine no céu. 
A dialética aplicada pelo autor é simplesmente, a meu ver, um grito de justiça e de lição a favor dos pobres e necessitados. No jogo de palavras do texto, encontramos implícitas ou explicitas as oposições da vida: Preto e o branco, o rico e o pobre, o céu e o inferno, o mal e o bom e o conhecido e o desconhecido.  A personagem “Irene” é uma tipologia do tipo de pessoa da comunidade pobre:
O texto elucida uma verdadeira lição de moral : “Irene” era pobre e preta, mas tinha valores que em muitos ricos e brancos não se encontravam: era boa e bem humorada, era do bem, e por ser tão intima foi bem recebida por São Pedro. Ganhou passagem ao céu.
- Embora o poema refira-se à imagem de uma pessoa querida pelo poeta, presente em sua infância, Irene representa também a mulher escrava, submissa, inferiorizada. O poeta sutilmente opõe branco e negro na segunda estrofe, onde Irene pede licença a São Pedro, chamando-o de meu branco.
Há ainda a exaltação à linguagem coloquial. A fala de São Pedro ordena: "- Entra, Irene. Você não precisa pedir licença". Na linguagem normativa, o correto seria conservar o tu ou empregar o verbo na 3ª pessoa do singular. Assim, teríamos:
- Entra, Irene. Tu não precisas pedir licença
- Entre, Irene. Você não precisa pedir licença
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"Libertinagem contém os poemas que escrevi de 1924 a 1930 - os anos de maior força e calor do movimento modernista. Não admira pois que seja entre os meus livros o que está mais dentro da técnica e da estética do modernismo". (Manuel Bandeira)
Síntese
Obra publicada em 1930, Libertinagem é composta por trinta e oito poemas. Embora comporte características da primeira geração modernista, como o humor, os versos livres e brancos, a linguagem mais coloquial e o cotidiano, o toque especial do poeta faz-se presente em todos os poemas: a simplicidade.
A simplicidade é um elemento importante no estilo de Bandeira. Ela é responsável pelo refinamento dos poemas - abordar o simples é que é difícil - e chega ao primarismo sentimental, sem resvalar na vulgaridade ou no pieguismo.
Libertinagem é, portanto, a novidade, o erotismo, a musicalidade, a força de imagens, o cunho biográfico, a paixão pela vida e a visão da morte, a infância, a pureza, a crítica, a liberdade, a saudade, o amor, a alegria, a tristeza, a evasão, a solidão.

"Pensão Familiar"
Jardim da pensãozinha burguesa.
Gatos espaçados ao sol.
A tiririca sitia os canteiros chatos.
O sol acaba de crestar os gosmilhos que murcharam.
Os girassóis
                             amarelo!
                                                      resistem.
E as dálias, rechonchudas, plebéias, dominicais.
Um gatinho faz pipi.
Com gestos de garçom de restaurant-Palace
Encobre cuidadosamente a mijadinha.
Sai vibrando com elegância a patinha direita:
- É a única criatura fina na pensãozinha burguesa.

Realizaremos uma breve análise do poema "Pensão Familiar", de Manuel Bandeira, de forma a relacionar os poemas segundo padrões estéticos e ideológicos do Movimento Modernista Brasileiro, fazendo-se importante ressaltar que o trabalho a seguir não tem a pretensão de realizar qualquer tipo de análise semântica aprofundada do conteúdo de nenhum dos dois poemas, atendo-se apenas a questões formais.
Para tanto, há de levar-se em conta o fato de que ambos os poemas foram compostos por seus respectivos autores num período que abarca os anos de 1922 a 1930, fase de caráter "radical" modernista, na qual, entre outras, houve a publicação do "Manifesto da Poesia Pau Brasil", por Oswald de Andrade, obra na qual se observa a proposição de alguns aspectos de extrema relevância, que caracterizam a poética do período, e da qual nota-se influência tanto sobre os poemas em questão quanto sobre grande parte das composições literárias e artísticas contemporâneas a ela.
"Pensão Familiar", em anexo, foi publicada no livro "Libertinagem", de Manuel Bandeira, no ano de 1930, tendo sido composta em 1925 pelo poeta. Situando-se entre uma vasta gama de artistas que deram origem ao Movimento Modernista; iniciado em 22 com a Semana de Arte Moderna, na qual o próprio autor teve participação ativa em sua concretização junto a Mário, Oswald de Andrade e outros; Bandeira apresenta em boa, se não toda, parte de sua obra traços especificamente modernistas. O poema, conforme se pretende verificar na seqüência, ilustra a afirmação. Apesar de intitulado "Pensão Familiar", o poema apresenta apenas figuras como os gatos, a tiririca, o sol, gosmilhos, girassóis e dálias, sendo composto por uma única ação efetiva: a do gato "fazer pipi" e "encobrir a mijadinha". Ao resgatar seus atos e afirmar a superioridade na elegância do animal, ressaltada pelo travessão (último verso), sobre todos os outros moradores da pensão, sobretudo levando em conta os versos que antecedem este último (última estrofe) e denotam os gestos do gato, que urina e cobre a excreção, comparando sua naturalidade à de um garçom, em tom de humor, Bandeira debocha e infama cinicamente a sociedade, e provavelmente trata-se aqui da baixa burguesia, em decadência.
O poema seguem a "linha modernista" em relação à métrica, ou seja, opta pelo rompimento com o tradicional, não apresentam regularidade aparente entre os versos, assim como é possível observar-se através de suas composições por verso-livre. Os recursos usados na imposição de ritmo aos poemas são a estrutura dos versos, a pontuação e a disposição consonantal, apreciadas adiante;

"Profundamente"
Quando ontem adormeci
Na noite de São João
Havia alegria e rumor
Estrondos de bombas luzes de Bengala
Vozes, cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas.

No meio da noite despertei
Não ouvi mais vozes nem risos
Apenas balões
Passavam, errantes
Silenciosamente
Apenas de vez em quando
O ruído de um bonde
Cortava o silêncio
Como um túnel.
Onde estavam os que há pouco
Dançavam
Cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas?

— Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
Dormindo
Profundamente.

*
Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci

Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão todos eles?

— Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.

Nota-se um sentimento de tristeza quando o poeta se lembra de um tempo “que não volta mais”: quando eu tinha seis anos...
Outro tema recorrente é a sensualidade. Muitas vezes expressada por um sentimento de impossibilidade de alcance do desejo sexual, em virtude dos problemas de saúde que impedem o poeta de ter um vida social e afetiva comum.
Mostra, além de um saudosismo pela infância do eu-lírico de forma melancólica, ideais modernistas, pela quebra de paradigmas com a forma fixa e a métrica (versos livres) e a brincadeira com o campo semântico das palavras em contexto.Interpretando o poema, pode-se dizer que o mesmo se apresenta em dois tempos distintos: o passado (quando tinha seis anos) e o presente (hoje); bem destacados pelos advérbios que aparecem no início da 1ª e da 5ª estrofes, respectivamente.O início do texto mostra algumas lembranças do eu-lírico vividas na noite de São João, quando ele tinha seis anos e não pôde ver o final da festa, porque tinha adormecido. Então, ao acordar (possivelmente, no meio da madrugada), toda a alegria produzida pelas músicas, risadas e brincadeiras do cotidiano das pessoas daquela época tinha desaparecido, porque todos da casa estavam dormindo profundamente (no sentido literal - denotativo). No entanto, a partir da 5ª estrofe, percebe-se a mudança de tempo e a mesma angústia vivida pelo eu-lírico de não ouvir mais as vozes daquele tempo e se questiona até perceber que eles não estavam mais lá, pois haviam morrido (“dormido profundamente” no sentindo conotativo).É interessante a brincadeira que o poeta faz com as palavras em seu sentido denotativo e conotativo (“dormir profundamente”- 4ª e 7ª estrofes); percebe-se, portanto, que se trata de um bom entendedor das palavras que o cercam e que, através de um vocabulário simples, consegue atingir temas tão profundos como a morte e a saudade.Além disso, ele utiliza-se de alguns recursos estilísticos, como o som e, para tal, a terceira estrofe pode ajudar, pois nos quatro primeiros versos, dá para notar a constante repetição do som “s” que provoca a idéia do queimar da pólvora produzida pelo balão (“[...] Estrondos de bombas luzes de Bengala / Vozes, cantigas e risos/ Ao pé das fogueiras acesas. / No meio da noite despertei / Não ouvi mais vozes nem risos / Apenas balões /Passavam, errantes /Silenciosamente [...]”), cuja zoada é cortada pelo advérbio de modo “Silenciosamente”, pois o som do fonema “s”, nesse caso, transmite a idéia do pedir silêncio (a onomatopéia do silêncio “siiii...”), uma vez que, tudo estava calmo, sem zoadas ou sons e quando acontecia algum ruído, era porque um ou outro bonde que passava “cortando o silêncio como um túnel” (comparação).O poema, através de um simples vocabulário, atinge temas tão profundos, de forma criativa, simples (utiliza-se de fatos do cotidiano das pessoas daquela época na noite de São João) e saudosista; típicas características desse autor pernambucano que não só marcou a literatura local, como a do Brasil como um.