quarta-feira, 16 de maio de 2012

LIRISMO AMOROSO NAS CANTIGAS TROVADORESCAS

TROVADORISMO

O Trovadorismo Português, também conhecido como Primeira Época Medieval, é o primeiro movimento literário da língua portuguesa. Seu surgimento ocorreu no mesmo período em que Portugal começou a despontar como nação independente, no século XII; porém, as suas origens deram-se na Occitânia, de onde se espalhou por praticamente toda a Europa. Apesar disso, a lírica medieval galaico-português possuiu características próprias, uma grande produtividade e um número considerável de autores conservados.
São admitidas quatro teses fundamentais para explicar a origem dessa poesia: a tese arábica, que considera a cultura arábica como sua velha raiz; a tese folclórica, que a julga criada pelo próprio povo; a tese médio-latinista, segundo a qual essa poesia teria origem na literatura latina produzida durante a Idade Média; e, por fim, a tese litúrgica, que a considera fruto da poesia litúrgico-cristã elaborada na mesma época. Todavia, nenhuma das teses citadas é suficiente em si mesma, deixando-nos na posição de aceitá-las conjuntamente, a fim de melhor abarcar os aspectos constantes dessa poesia.
A mais antiga manifestação literária galaico-portuguesa que se pode datar é a cantiga "Ora faz host'o senhor de Navarra", do trovador português João Soares de Paiva ou João Soares de Pávia, composta provavelmente por volta do ano 1200. Por essa cantiga ser a mais antiga datável (por conter dados históricos precisos), convém datar daí o início do Lírica medieval galego-portuguesa (e não, como se supunha, a partir da "Cantiga de Guarvaia", composta por Paio Soares de Taveirós, cuja data de composição é impossível de apurar com exactidão, mas que, tendo em conta os dados biográficos do seu autor, é certamente bastante posterior). Este texto também é chamado de "Cantiga da Ribeirinha" por ter sido dedicada à Dona Maria Paes Ribeiro, a ribeirinha. De 1200, a Lírica galego-portuguesa se estende até meados do século XIV, sendo usual referir como termo o ano de 1350, data do testamento do Conde D. Pedro, Conde de Barcelos|D. Pedro de Barcelos, filho primogênito bastardo de D. Dinis, ele próprio trovador e provável compilador das cantigas (no testamento, D. Pedro lega um "Livro das Cantigas" a seu sobrinho, D.Afonso XI de Castela).
Trovadores eram aqueles que compunham as poesias e as melodias que as acompanhavam, e cantigas são as poesias cantadas. A designação "trovador" aplicava-se aos autores de origem nobre, sendo que os autores de origem vilã tinham o nome de jogral, termo que designava igualmente o seu estatuto de profissional (em contraste com o trovador). Ainda que seja coerente a afirmação de que quem tocava e cantava as poesias eram os jograis, é muito possível que a maioria dos trovadores interpretasse igualmente as suas próprias composições.
A mentalidade da época baseada no teocentrismo serviu como base para a estrutura da cantiga de amigo, em que o amor espiritual e inatingível é retratado. As cantigas, primeiramente destinadas ao canto, foram depois manuscritas em cadernos de apontamentos, que mais tarde foram postas em coletâneas de canções chamadas Cancioneiros (livros que reuniam grande número de trovas). São conhecidos três Cancioneiros galego-portugueses: o "Cancioneiro da Ajuda", o "Cancioneiro da Biblioteca Nacional de Lisboa" (Colocci-Brancutti) e o "Cancioneiro da Vaticana". Além disso, há um quarto livro de cantigas dedicadas à Virgem Maria pelo rei Afonso X de Leão e Castela, O Sábio. Surgiram também os textos em prosa de cronistas como Rui de Pina, Fernão Lopes e Gomes Eanes de Zurara e as novelas de cavalaria, como a demanda do Santo Graal.

O LIRISMO AMOROSO NAS CANTIGAS TROVADORESCAS
SUBLIMAÇÃO, CONCRETIZAÇÃO, TRANGRESSÃO

O amor é tema sempre presente no lirismo português. A Idade Média contempla-o sob diferentes enfoques. Há o erotismo pujante das novelas de cavalaria, onde o amor oblitera quaisquer outros laços, haja vista os amores transgressores de Lancelote pela rainha Genevra, esposa de rei Artur, de Tristão e Isolda, esposa de rei Marc, da Cornualha, tio materno de Tristão. Nas cantigas trovadorescas é também sob variadas nuances que se apresenta este sentimento tão avassalador para o ser humano, ora perspectivando as impossibilidades de sua realização, ora a sua concretização, amor às vezes alvo de idealização, às vezes de escárnio.
A sublimação nas cantigas de amor
As cantigas de amor situam-se no contexto da vida na corte, sendo uma produção mais intelectualizada, fruto de um amor quase sempre impossível de um trovador por uma senhora de classe social mais elevada – a castelã –, geralmente casada. É um amor submetido a regras - as regras do amor cortês - que o trovador precisava seguir para não despertar a sanha da senhora, ou para não fugir ao paradigma do gênero. Assim, era fundamental a discrição e moderação ao exprimir o sentimento amoroso; o amor oculto, preservando a identidade e o retrato físico da dama ou, quando muito, empregando o senhal, o pseudônimo poético; a coita, apresentando como possíveis soluções para a dor amorosa o morrer de amor ou o enlouquecimento, a perda total da razão. Tal como o amor à primeira vista da atualidade, era o ver que deflagrava o amor, o encantamento diante de tão divina dama, criada por Deus (Deus artifex). Cabia ao trovador a atitude de vassalo, lançando-se aos pés de sua amada. A cantiga de Pero Garcia Burgalês ilustra tal procedimento:

Ai eu coitad! E por que vi
a dona que por meu mal vi!
Ca Deus lo sabe, poila vi,
nunca já mais prazer ar vi;
ca de quantas donas eu vi,
tam bõa dona nunca vi.

Tam comprida de todo bem,
per boa fé, esto sei bem,
se Nostro Senhor me dê bem
dela! Que eu quero gram bem,
per boa fé, nom por meu bem!
Ca pero que lh’eu quero bem,
non sabe ca lhe quero bem.

Ca lho nego pola veer,
pero nona posso veer!
Mais Deus, que mi a fezo veer,
rogu’eu que mi a faça veer;
e se mi a non fazer veer.
sei bem que non posso veer
prazer nunca sem a veer.

Ca lhe quero melhor ca mim,
pero non o sabe per mim,
a que eu vi por mal de mi[m].

Nem outre já, mentr’ eu o sem
houver; mais s perder o sem,
dire[i]-o com mingua de sem;

Ca vedes que ouço dizer
que mingua de sem faz dizer
a home o que non quer dizer!

O eu-lírico apresenta-se, desde a primeira linha, como o coitado, o que sofre por um amor iniciado ao ver aquela que se tornaria a dona de seu coração. A dama é focalizada como a mais perfeita de todas, marca de excelência que a aproxima de Maria, cujo culto teve início à época medieval. O amor não reverte em bem para o amador. Nesta cantiga, a senhora sequer tem conhecimento do sentimento que lhe é dedicado, amor marcado pela impossibilidade do trovador ver a sua dama, inviabilizando o prazer de viver. Num período caracteristicamente teocêntrico, Deus é vislumbrado como o que tem o poder de favorecer o eu-lírico com a visão da amada – máxima aspiração do amador. Recai também sobre a figura divina a responsabilidade de deflagrar esse sentimento inaugurado pelo ver. A regra de ocultar a identidade da dama é respeitada; a única possibilidade de transgredi-la é através do ensandecimento a que conduz o amor.
O vocábulo bem, referindo-se à mulher amada, reveste-se de uma certa ambigüidade. Em muitas cantigas seu significado assinala a negação da senhora em conceder qualquer agrado ao trovador. No texto transcrito abaixo, de João Aires, de Santiago, a aderência de uma reciprocidade que beira a realização carnal projeta a palavra em um contexto bastante singular para as cantigas de amor.

Desei’ eu ben auer de mha senhor,
mays nõ desei’ auer bê d’ela tal,
por seer meu bê, que seia seu mal,
e por aquesto, par Nostro Senhor,
en que perdesse do sseu nulla ren,
ca non é meu ben o que seu mal for,

Ante cuyd’ eu que o que seu mal é
que meu mal est, e cuydo grã razõ,
por ê deseio no meu coraçon
auer tal bê d’ela, per boa fé,
en que nõ perca rê de seu bon prez,
nê lh’ ar diga nulh’ ome que mal fez,
e outro ben Deus d’ ela nõ mi de.



E ia muytus namorados uj
que nõ dauan nulha rê por aver
ssas senhores mal, pois a ssy prazer
fazian, e por esto dig’ assy:
nõ queria que me fezesse bem
se eu mha senhor amo pelo meu
bê e nõ cato a nulha rê do sseu,
nõ am’ eu mha senhor, mays amo mj.

E mal mi venha, se atal fuy eu,
ca, des que eu no mûd’ andey por seu,
amey ssa prol muyto mays ca de mi.

O trovador enfatiza um procedimento amoroso que tenciona a possibilidade de realização amorosa – o desejo de obter o bem da dama - com o possível prejuízo que tal ação poderia trazer à reputação dela. O bem - o prazer - que o eu-lírico poderia auferir desse relacionamento amoroso é minimizado diante do mal possivelmente causado à amada: a reciprocidade amorosa garante a busca de identidade também nas conseqüências daquele amor. Há a preocupação do eu-lírico de que ela não perca sua honra (prez), ocasionando a maledicência de outros homens: nê lh’ ar diga nulh’ ome que mal fez. Compara-se a namorados que só pensam em si mesmos, negligenciando a felicidade da amada. Evidencia a sua superioridade como amante, já que não considera amor o sentimento desses homens, voltados apenas para o próprio prazer. O amor, para o eu-lírico, caracteriza-se pela doação, pela preservação não só da identidade da dama como da própria honra feminina, a despeito de todo o prazer – de todo o bem – que poderia usufruir na companhia dela. Abdica de tudo, rogando que outro ben Deus d’ ela nõ mi de, caso venha a lhe proporcionar o mal, além de lançar sobre si mesmo uma espécie de maldição, se vier a agir como os outros namorados citados.

O amor caracteriza-se, nas cantigas de amor, pela sublimação amorosa, haja vista a freqüência com que a impossibilidade de sua realização e o sofrimento habitam esses textos. Mas, nas suas franjas, o amor às vezes se faz possível quanto à correspondência da amada. Outras são, entretanto, as interdições que marcam esse amor, em eterno confronto com o social.

A possível concretização amorosa nas cantigas de amigo

As cantigas de amigo, embora de autoria masculina, apresentam o universo feminino: é a voz da mulher que fala nessas cantigas, de temática bastante variada. Assim, ora celebra-se o amor correspondido, ora as dores da saudade ou da incorrespondência. São textos que mostram um viver simples, de uma domesticidade encontrável ainda hoje em dia, em um cenário caracterizado pela presença da natureza, pela igreja, pela vida familiar. A cantiga abaixo, de Martim de Guinzo, de estrutura paralelística, assinala a proibição materna como o grande impedimento para a felicidade amorosa. Observa-se o diálogo da moça com sua mãe, tentando sensibilizá-la para o pesar que a separação lhe causa e a possível alegria futura. A igreja é o local de convergência da vida social, ponto de encontro da donzela com seu amigo:

Non poss’ eu, madre, ir a Santa Cecília
ca me guardades a noit’ e o dia
do meu amigo

Nom poss’ eu, madre, aver gasalhado,
ca me non leixades fazer mandado
do meu amigo.

Ca me guardades a noit’ e o dia;
morrer-vos-ei con aquesta perfia
por meu amigo.

Ca me non leixades fazer mandado,
morrer-vos ei con aqueste cuidado
por meu amigo.

Morrer-vos ei con aquesta perfia,
e, se me leixassedes ir, guarria
con meu amigo.

Morrer-vos ei con aqueste cuidado,
e, se quiserdes, irei mui de grado
con meu amigo. 

Na cantiga de Julião Bolseiro há também o impedimento para o encontro dos amantes, só que nesta a proibição parte da figura filial, abordando uma situação inusitada, pelo que manifesta de moderna. O diálogo se tece da mãe - voz do texto - para a filha:

Mal me tragedes, ai filha,
porque quer ‘ aver amigo
e pois eu com vosso medo
non o ei, nen é comigo,
no ajade-la mia graça
e dê-vos Deus, ai mia filha,
filha que vos assi faça,
filha que vos assi faça.

Sabedes ca sen amigo
nunca foi molher viçosa,
e, porque mi-o non leixades
ver, mia filha fremosa,
no ajade-la mia graça
e dê-vos Deus, ai mia filha,
filha que vos assi faça,
filha que vos assi faça.

Pois eu non ei meu amigo,
non ei ren do que desejo,
mais, pois que mi por vós veo
Mia filha, que o non vejo,
no ajade-la mia graça
e dê-vos Deus, ai mia filha,
filha que vos assi faça,
filha que vos assi faça.

Por vós perdi meu amigo,
por que gran coita padesco,
e, pois que mi-o vós tolhestes
e melhor ca vós paresco [4]
no ajade-la mia graça
e dê-vos Deus, ai mia filha,
filha que vos assi faça,
filha que vos assi faça

A cantiga afiança, do ponto de vista da mãe, o medo da filha com relação ao envolvimento amoroso materno, apontado como o motivo da separação. O amor é a garantia de felicidade entre os seres humanos, resultando na formosura da mulher, no seu viço, no seu frescor, sentimento que imprime um gosto de aventura e um sentido à vida. A cantiga evidencia uma certa competição entre as duas mulheres, uma vez que a mãe afirma que melhor ca vós paresco. Lança-lhe, no estribilho, uma espécie de maldição ao negar-lhe a sua graça (a sua benção) e ao desejar que a moça sofra do mesmo padecimento, vindo ao ter uma filha semelhante a ela mesma.
Se obstáculos ocorrem inevitavelmente na relação amorosa, a sua realização é motivo de júbilo e de celebração da própria vida. Na cantiga de Joan Garcia de Guilhade, a donzela elege o mundo terreno como melhor lugar possível, quando Deus concede o bem aos seres que nele vivem. O bem se caracteriza pela formosura e bom prez da moça, prováveis razões do amigo muit’ amar. O paraíso, local cujo valor positivo é inquestionável para o eu-lírico, ofusca-se perto da felicidade alcançada pelos amantes neste mundo, geralmente apontado como o vale de lágrimas purificador para a vida no mundo espiritual: o amor projeta os seres apaixonados no próprio paraíso:

Quer’eu, amigas, o mundo loar
por quanto bem mi Nostro Senhor fez:
fez-me fremosa e de mui bom prez,
ar faz-mi meu amigo muit’ amar:
aqueste mundo x’est a melhor rem
das que Deus fez a quem el i faz bem.

O paraiso bõo x’ é de pran,
ca o fez Deus, e non digu’eu de non,
mai-los amigos, que no mundo som,
[e] amigas muit’ ambos lezer ham:
aqueste mundo x’est a melhor rem
das que Deus fez a quem el i faz bem.

Querria-m’ eu o parais’ haver,
des que morresse, bem come quem quer,
mais, poi-la dona seu amig’ hoer
e com el pode no mundo viver,
aqueste mundo x’est a melhor rem
das que Deus fez a quem el i faz bem.


[E] quem aquesto non tever por bem
[já] nunca lhi Deus dê em el rem. [5]

Em outras cantigas acentua-se o tom erótico. Na cantiga de amigo de Joan Garcia de Guilhade, a insinuação do desejo masculino, pelo que solicita da amiga, aparece na fala dela a outras moças. Há uma sucessão de “entregas” ao amado queixoso: a cinta, a corda da camisa e outros dons que venha a lhe pedir, já que ele se fez merecedor de tal atitude por parte dela. O elogio ao amigo surge na fala de um eu-lírico feminino, sem que se possa esquecer que a autoria é masculina, o que transforma o enaltecimento por parte de outrem em auto-elogio. Todas as estrofes terminam com versos que evidenciam o desejo de “algo mais” por parte do amigo, insinuando-se o pedido de realização carnal: as prendas oferecidas pela moça não são suficientes e ele demanda outra folia, al (outra coisa, que não deveria pedir), outra torpidade.

Vistes, mias donas, quando noutro dia
o meu amigo comigo falou,
foi mui queixos’ e, pero se queixou,
dei-lh’eu enton a cinta que tragia,
mais el demanda-m(or’) outra folia.

E vistes (que nunca, nunca tal visse!)
por s’ir queixar, mias donas, tan sem guisa,
fez-mi tirar a corda da camisa
e dei-lh’eu d’ela bem quanta m’el disse,
mais el demanda-mi al, que non pedisse.

Sempr’ (a)verá don Joan de Guilhade,
mentr’el quiser, amigas, das mias dõas,
ca já m’end’el muitas deu e mui bõas,
des i terrei-lhi sempre lealdade,
mais el demanda-m’ outra torpidade .

As cantigas de amigo, por sua singeleza e proximidade a uma vida real, com suas mazelas e felicidades, celebra a própria vida através de histórias de mulheres. São mães, filhas e amigas que entretecem o amor a seus amigos nas nuances de uma palavra poética que cultua a paixão.

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